sábado, 22 de julho de 2023

Reforma tributária: ‘imposto do pecado’ com superpoderes preocupa prestadores de serviços essenciais

 



PEC estabelece que produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente sejam taxados, mas não especifica itens; temor é que finalidade regulatória do tributo seja desvirtuada em meio à necessidade arrecadatória do governo


O imposto seletivo proposto 

pela reforma tributária tem 

movimentado tributaristas e

 entidades empresariais pelo 

risco de encarecer serviços 

hoje considerados essenciais,

 como energia elétrica, 

combustíveis e 

telecomunicações — os quais,

além de atender ao 

consumidor final, também 

são insumos em outras 

cadeias produtivas.


O novo imposto, a ser 

cobrado além do Imposto 

do Valor Agregado (IVA) 

— que vai unificar os 

tributos atuais —, foi 

criado com a missão de 

taxar a mais produtos 

considerados prejudiciais 

à saúde e, uma inovação, 

ao meio ambiente. Por isso,

 também é conhecido como

 “imposto do pecado”. 


Hoje, itens como bebidas 

alcoólicas e cigarros já têm 

tributação adicional, mas a 

expectativa é que a lista de 

itens sobretaxados possa 

aumentar com a previsão 

expressa na Constituição a 

atividades que economistas

 classificam como geradoras 

de “externalidades negativas”.


No caso da energia elétrica, 

há o temor de que a geração

 seja considerada danosa ao

 meio ambiente e, por isso, 

passível de ser taxada pelo

 seletivo. A matriz energética

 brasileira é composta, por 

exemplo, por termelétricas 

movidas a carvão, uma 

fonte mais poluente. E até

 mesmo as hidrelétricas, 

majoritárias no nosso 

sistema, poderiam ser 

consideradas prejudiciais 

devido à construção dos 

reservatórios, que impactam 

que impactam a fauna e

 a flora. Em relação aos 

combustíveis fósseis, o

 receio também está ligado

 à questão ambiental, uma

 vez que a queima produz

gases do efeito estufa.


O texto da reforma tributária 

aprovado na Câmara 

estabelece que o imposto 

seletivo será de 

responsabilidade do 

governo federal e, assim 

como funciona hoje com

 o IPI (Imposto sobre 

Produtos Industrializados) 

— que também tem caráter 

regulatório —, poderá ter a 

alíquota alterada a qualquer 

momento por iniciativa da 

União, sem a necessidade

de aval do Congresso. Ele 

também não precisará 

esperar até o ano seguinte 

(princípio da anterioridade) 

para começar a valer.  


A regulação desse imposto 

está prevista para lei 

complementar, com a 

menção explícita a bens e 

serviços passíveis da 

sobretaxa. No entanto, 

uma redação incluída na 

PEC deixou alguns setores 

preocupados, pois, segundo 

tributaristas, viraram 

candidatos a entrar para o 

seletivo — principalmente

 em momentos em que

 houver necessidade de 

elevar a arrecadação. 

São eles: energia elétrica, 

serviços de telecomunicações, 

derivados de petróleo, 

combustíveis e minerais.


A nova redação do artigo 155

 da Constituição afirma que 

esses bens e serviços não 

erão taxados por nenhum 

outro imposto, à exceção do

 IBS (novo imposto que 

substituirá o ICMS, estadual, 

e o ISS, municipal) e do 

seletivo.


“Essas atividades permitem

 uma arrecadação muito alta 

ao governo. 


Telecomunicações e energia, 

por exemplo, são consumidos

 por todos. Então esses 

setores sabem que são alvos

 fáceis”, explica Luiz Roberto 

Peroba, sócio da área t

ributária do Pinheiro Neto 

Advogados. “O IPI, 

originalmente, tinha essa 

finalidade regulatória; mas, 

com o passar do tempo, isso

 foi se desvirtuando”, afirma.


Serviços essenciais

A questão é que eletricidade, 

combustíveis e 

telecomunicações receberam 

o tratamento de serviços 

essenciais pelo Supremo 

Tribunal Federal, que 

determinou que eles não 

poderiam ter taxas elevadas 

de ICMS e deveriam ser 

tributados pela alíquota 

modal (a padrão) de cada 

Estado, que à época girava 

ao redor de 17%.


Esse entendimento embasou 

uma lei complementar proposta

 por Jair Bolsonaro (PL) no ano

 passado que obrigou os 

governadores a baixar o ICMS 

sobre combustíveis 

temporariamente. Agora, 

durante a tramitação da reforma 

tributária, esses setores 

batalham para serem 

considerados essenciais e, 

assim, escaparem do seletivo.


No entanto, o advogado 

Rodrigo Bevilaqua, que é 

sócio da área tributária do 

escritório Cescon Barrieu, 

afirma que a essencialidade, 

por si só, não é suficiente. “

O enquadramento como 

essencial é um caminho, mas 

não basta para afastar o risco

 do seletivo”, diz. “Seria 

necessário prever que, como 

essenciais, eles merecem 

tratamento diferenciado com 

taxação não superior aos

 demais.”


A diretora de Assuntos 

Técnicos e Regulatórios da 

Associação Nacional dos 

Consumidores de Energia 

(Anace), Mariana Amim, 

afirma que o 

reconhecimento da 

essencialidade seria apenas 

o primeiro passo para o 

setor negociar esse 

tratamento diferenciado, por 

meio de alíquotas reduzidas 

— afastando, dessa maneira, 

a incidência do seletivo.


Isso porque a PEC proíbe a 

cobrança desse novo tributo 

sobre bens e serviços que 

tenham redução de alíquota. 


“Por isso a importância de o

 Senado reconhecer a energia 

elétrica como um insumo 

essencial”, afirma Mariana.


Biocombustíveis, como o etanol, 

já foram agraciados, ainda na 

Câmara, com tratamento 

diferenciado. A nova redação 

do artigo 225, no texto da 

reforma tributária, assegura

 “tributação inferior à incidente 

sobre os combustíveis fósseis, 

capaz de garantir diferencial 

competitivo”.


Bevilaqua afirma que a 

gestão da União sobre o 

seletivo também deixou em 

alerta o setor de petróleo, 

após o Ministério da Fazenda

 ter elevado o imposto sobre 

as exportações de óleo 

bruto em maio, sem aviso 

prévio. A equipe econômica 

alega que precisava da 

receita para manter a 

desoneração do diesel até

 o fim deste ano, mas as 

empresas recorreram à Justiça.


“Um imposto que é regulatório

 (o de exportação) foi usado 

com viés arrecadatório, e o 

temor é que o seletivo opere 

com essas mesmas 

prerrogativas”, diz o advogado.


A Fazenda tem apresentado 

resistências à inclusão de 

mais setores na lista de 

exceções, alegando que 

isso pode afetar o 

funcionamento do novo IVA. 


A ministra do Planejamento, Simone Tebet, já disse que a depender do número de tratamentos diferenciados a reforma pode ir por terra.

Zona Franca

Mas o seletivo não está 

provocando debate apenas

 pelo risco de sobretaxa 

nestes setores. O advogado

 Gustavo Brigagão, do 

escritório Brigagão, Duque

 Estrada, afirma que no 

capítulo inserido sobre a 

Zona Franca, o texto da 

reforma também previu 

ue o seletivo possa ser 

usado para manter o 

diferencial de tributação 

para as empresas instaladas 

na região.


Neste caso, o seletivo 

seria aplicado sobre 

concorrentes da Zona 

Franca fabricados em 

outras regiões do País, 

como motos ou 

refrigerantes, por exemplo. 


O artigo 92-B afirma que 

serão utilizados, individual 

ou cumulativamente,

instrumentos fiscais, 

econômicos ou financeiros, 

inclusive a incidência do 

imposto seletivo, para 

manter o tratamento 

favorecido às empresas 

instaladas na região.


“A menos que você 

considere uma externalidade

 negativa ao meio ambiente

 industrializar, comercializar

 ou importar um bem fora 

da Zona Franca, essa 

aplicação do seletivo não faz 

sentido”, afirma Brigagão. 


Peroba reforça a avaliação:

 “Essa aplicação do seletivo,

 do ponto de vista técnico, 

é totalmente inadequada. 

Foi uma escolha política.”


A previsão foi um pleito da 

bancada do Amazonas, 

que negociou com o 

Ministério da Fazenda 

inserções na reforma que 

garantissem a sobrevida 

da região, cuja previsão 

atual de existência vai até 

2073. O relator da reforma 

no Senado, Eduardo Braga 

(MDB-AM), foi um dos 

principais responsáveis 

pela inserção dos trechos 

que atendem à Zona Franca 

e, por isso, é improvável que 

faça modificações na

tramitação no Senado.


Mariana Carneiro e Bianca Lima, O Estado de São Paulo