O jurista Ives Gandra da Silva Martins entende que cortes superiores se orientam por interpretações próprias acerca da democracia| Foto: Divulgação / Advocacia Grandra Martins
Após a recente condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) à pena de inelegibilidade por oito anos, ainda permanece o debate sobre a atuação da Justiça Eleitoral inserida no contexto político do país. Em entrevista à Gazeta do Povo, Ives Gandra Martins, renomado jurista e estudioso do Direito Constitucional, deixa claro a sua posição sobre a atuação da Justiça Eleitoral ao analisar o caso específico envolvendo o ex-presidente. Para ele, Bolsonaro foi condenado de forma excessiva, com a pena máxima, apenas por emitir uma opinião crítica acerca das urnas eletrônicas, por considerá-las fraudáveis.
"Eles têm um conceito próprio do que seja a democracia", disse, citando também o caso do ex-deputado cassado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) e lembrando que embora o Direito comporte diferentes interpretações, o cenário jurídico atual está moldado por princípios de viés socialista. A seguir os principais trechos da entrevista.
Gazeta do Povo: Como o senhor avalia a recente condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro à pena de inelegibilidade por oito anos e o contexto da Justiça Eleitoral em que ela está inserida?
Ives Gandra Martins: São poucos os países do mundo que têm uma Justiça exclusivamente eleitoral. A sua representante brasileira foi criada ainda nos tempos da ditadura do presidente Getúlio Vargas e ela vem mantendo por décadas a tendência de privilegiar a preservação do processo eleitoral, sem jamais intervir diretamente no resultado da opinião livremente expressa dos eleitores. A democracia se exercita com o respeito à vontade de quem vota e o tribunal eleitoral sempre se pautou por isso.
Contudo, nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem adotado uma nova linha de interpretação pela qual os seus membros também se colocam como os defensores da democracia, no papel que deveria ser exercido pelo próprio povo. A partir daí, integrantes do STF desenvolveram um conceito próprio de democracia, decidindo se alguém pode ou não ser eleito, fazendo até interpretações mais extensivas como foi a do caso do ex-deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR), que, sem sequer ter sido aberto um processo administrativo contra ele no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), uma mera possibilidade de tal fato ocorrer foi considerada o suficiente para justificar uma decisão unânime por sua perda de mandato.
No caso do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que defendeu a implantação no país de urnas com voto auditável, ele tratou de algo que já vinha sendo defendido há muitos anos pelos muitos que querem aperfeiçoar o processo eleitoral atual baseado nessas mesmas urnas, cujo modelo é um dos poucos adotados no mundo.
O simples fato de ele ter expressado a representantes de missões estrangeiras a sua posição em relação a essas urnas que considera fraudáveis serviu de justificativa para que perdesse direitos políticos. A partir do simples fato de ter constatado uma fragilidade no sistema e a expor publicamente levou o ex-presidente a receber a maior sanção possível da Justiça Eleitoral.
Na minha opinião, caso fizesse parte do colegiado, discordaria da decisão e votaria juntamente com os dois ministros (Raul Araújo e Nunes Marques) que não encontraram motivos suficientes para um caso de inelegibilidade. De toda forma, eu faria ainda parte de uma posição indiscutivelmente minoritária.
Gazeta do Povo: O que mais chamou a atenção do senhor em relação ao que foi julgado nessa ação que acabou condenando o ex-presidente?
Ives Gandra Martins: Por tudo o que eu li na imprensa e por tudo o que acompanhei em relação a esse importante julgamento do Tribunal Superior Eleitoral, a inelegibilidade aplicada ao ex-presidente Bolsonaro tem apenas o alcance de o impedir a concorrer numa eleição no prazo de oito anos. A perda de direito de ser candidato não o impede de exercitar os demais direitos como cidadão, votando e escolhendo a quem apoiar nos pleitos.
Em relação ao questionamento provocado pelo PDT, com pedido para torná-lo inelegível, há um aspecto interessantíssimo. Circulou pelas redes sociais nos dias seguintes à decisão da maioria dos ministros um vídeo do senhor Carlos Lupi, presidente da mesma agremiação partidária que propôs a ação de inelegibilidade de Bolsonaro, fazendo as mesmas declarações contundentes em relação às mesmas urnas eletrônicas, mostrando desconfiança de que elas eram mesmo fraudáveis. Se o conteúdo desse vídeo não foi a obra de uma notícia falsa ou de qualquer tipo de armação, como parece não ser mesmo, trata-se, então, de algo extremamente curioso.
Em resumo, o líder máximo daquela legenda que propôs a ação com base no argumento de Bolsonaro ter cometido infração grave no pleito quando este teceu afirmações críticas às urnas, apontando que elas são fraudáveis, algo que vinha fazendo antes mesmo de ser presidente, também é o mesmo que em passado recente estava a fazer o mesmo tipo de questionamento e defendendo a mesma tese que o acusado. Lidamos aí então com um dado deveras curioso, que ilustra bem os novos tempos do Direito brasileiro.
Gazeta do Povo: O que resta ao ex-presidente fazer no momento para reagir ao resultado do julgamento?
Ives Gandra Martins: Há, evidentemente, a possibilidade de um recurso ser apresentado pela sua defesa para o Supremo Tribunal Federal, fora os embargos de declaração que já estão sendo feitos junto ao próprio TSE. Mas há um aspecto muito interessante nessa questão. É que o efeito suspensivo da decisão não poderia existir enquanto os embargos não forem analisados pelo tribunal eleitoral. Essa inelegibilidade está essencialmente atingindo o presidente para a eleição de 2026. O esforço de se recorrer seria, em tese, para reverter essa realidade. Enquanto isso, não há qualquer chance de concorrer a qualquer cargo nas próximas eleições gerais. Creio que o esforço pode então se tornar infrutífero.
Gazeta do Povo: Em relação ao mérito, sua avaliação é então de que pesou uma interpretação particular do Direito representada pela maioria dos ministros da Corte?
Ives Gandra Martins: Em uma rara decisão, o presidente Bolsonaro foi condenado pela opinião que ele tinha sobre as urnas eletrônicas, de que elas eram fraudáveis. Urnas estas cujos modelos são pouquíssimos usados no mundo. Um presidente da República se manifesta por entender que é necessário haver voto impresso auditável está apenas expondo a sua opinião. Se ele é condenado pela Justiça Eleitoral com a pena máxima por esta razão, o que então se pode esperar?
Vivemos um momento em que o Poder Judiciário evidentemente tem uma linha de pensamento e uma interpretação do Direito muito mais favorável ao perfil daqueles que hoje estão detendo o poder. A inclinação das cortes superiores, formada em sua maioria por indicados de presidentes de esquerda, é a de fazer uma interpretação mais genérica da Constituição em função de seu viés socialista. Com um STF e um TSE com análises vinculadas a uma linha de princípios socialistas, o Judiciário acaba se contrapondo às visões de um sentido mais liberal, com mais ênfase para a liberdade da sociedade em relação ao Estado.
Em resumo, são duas visões: uma que representa o Estado atuando sobre a sociedade e outra da sociedade atuando sobre o Estado. Foram essas visões que se chocaram no julgamento do presidente. Por isso, acompanho o entendimento dos dois ministros que divergiram e votaram pela absolvição.
Repito: não houve nenhum delito, nenhuma infração premeditadamente eleitoral, a justificar a pena máxima da Justiça. Cinco dos sete ministros da corte eleitoral têm cargos vitalícios até os 75 anos e dois não têm. Essa maioria segue uma doutrina com princípios gerais que interferem até na legislação infraconstitucional. Portanto, é possível até recorrer para tentar mudar o desfecho do julgamento, mas acho muito difícil o ex-presidente Bolsonaro obter um resultado diferente, até mesmo recorrendo ao STF. Aí está o peso do Estado. Evidentemente, o Direito comporta a interação de interpretações as mais variadas, e as minhas são as dos ministros que abriram divergência.
Sílvia Ribas, Gazeta do Povo