Pedro Sánchez, presidente do governo da Espanha, que assumiu a presidência temporária da União Europeia este ano, e o presidente americano, Joe Biden, em encontro na Casa Branca em maio| Foto: EFE/Lenin Nolly
Na geopolítica mundial de hoje, está em curso uma espécie de nova Guerra Fria: os Estados Unidos em contraponto a um eixo autoritário (China e Rússia), com a Europa servindo de coadjuvante para os americanos.
É uma realidade que reflete uma transformação econômica ocorrida nos últimos 15 anos, com os europeus, antes uma força comparável aos Estados Unidos, sendo superados e vendo os aliados do outro lado do Atlântico aumentando essa vantagem.
Segundo números do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) trabalhados pelo think tank Conselho Europeu sobre Relações Exteriores (ECFR, na sigla em inglês), em 2008, as economias dos países da União Europeia somavam US$ 16,2 trilhões, contra US$ 14,7 trilhões dos Estados Unidos.
Porém, no ano passado, o PIB americano chegou a US$ 25 trilhões, enquanto a UE e o Reino Unido (que deixou o bloco nesse intervalo) juntos atingiram apenas US$ 19,8 trilhões.
Em um artigo recente para o Financial Times, o colunista Gideon Rachman apresentou dados que ilustram como a Europa ficou para trás. Enquanto as maiores empresas de tecnologia do mundo são americanas e a China vem conseguindo desenvolver também gigantes no setor, há apenas duas big techs europeias no top 20 mundial em valor de mercado (a holandesa ASML e a alemã SAP).
Rachman citou também que os levantamentos Shanghai Ranking e Times Higher Education de melhores universidades do mundo colocaram apenas uma instituição da UE entre as 30 primeiras (o Reino Unido teve mais nomes, como Cambridge e Oxford); que a participação europeia na fabricação mundial de semicondutores caiu de 44% para 9% desde 1990; e que hoje o capital privado para investimentos está muito mais disponível nos Estados Unidos do que na Europa.
O analista lembrou ainda que os Estados Unidos possuem fontes de energia muito mais abundantes e baratas, enquanto os europeus sofreram recentemente o choque da perda do gás e do petróleo russos em razão das sanções impostas pela invasão à Ucrânia.
Rachman apontou que o domínio europeu nas chamadas indústrias de estilo de vida, como turismo e mercado de luxo, vende a sensação de que a decadência econômica do Velho Continente não é tão grande assim – e essa acomodação é problemática. “Sem um maior senso de ameaça, a Europa pode nunca despertar o desejo de reverter seu inexorável declínio de poder, influência e riqueza”, alfinetou.
Em defesa, um sistema de “vassalagem”
Em artigo para o ECFR, dois pesquisadores do think tank, Jeremy Shapiro e Jana Puglierin, destacaram que o euro foi comprado ou vendido em 31% das transações globais de câmbio em 2022, muito abaixo dos 39% em 2010.
Shapiro e Puglieri afirmaram que a perda comparativa de poder e influência da Europa chega à área militar, após anos de gastos com defesa estagnados. Entre 2008 e 2021, os gastos militares anuais dos Estados Unidos aumentaram de US$ 656 bilhões para US$ 801 bilhões, enquanto os da UE e do Reino Unido somados passaram apenas de US$ 303 bilhões para US$ 325 bilhões.
“Pior ainda, os gastos dos Estados Unidos em novas tecnologias de defesa permanecem mais de sete vezes maiores do que a soma de todos os estados-membros da UE”, afirmaram, alertando para o fato de que essa diferença pode comprometer a própria OTAN, a aliança militar transatlântica do Ocidente, na medida em que os europeus se tornam cada vez mais dependentes dos americanos em termos militares.
“Esforços europeus são [...] necessários para evitar que a aliança se deteriore em um sistema de vassalagem que, com o tempo, deixará os europeus ressentidos e os americanos desdenhosos”, apontaram os pesquisadores.
Reflexos da crise
O ponto de partida para a disparidade econômica entre os aliados foi a crise de 2008, que, conforme ressaltado por Josilmar Cordenonssi, professor de ciências econômicas do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas (CCSA) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), “apesar de ter surgido nos Estados Unidos, foi pior para a Europa”.
Em 2009, ano seguinte à detonação da crise, o PIB dos Estados Unidos sofreu retração de 2,6%, segundo dados do Banco Mundial; já o da UE teve queda de 4,3%. Com a crise e nos anos seguintes, países do bloco enfrentaram problemas de solvência, recessão profunda, aumento da dívida pública, ajustes fiscais severos e outros obstáculos.
A isso, lembrou Cordenonssi em entrevista à Gazeta do Povo, se somam fatores estruturais. “A economia americana é muito mais dinâmica que a europeia. É muito menos regulada, principalmente no mercado de trabalho, na facilidade de abrir e fechar negócios”, explicou. “Você tem países na Europa, como a Espanha, em que o desemprego dificilmente fica abaixo de 10%. Nos EUA, o nível de desemprego é sistematicamente baixo, [hoje está] abaixo de 4%.”
O analista destacou outras diferenças nos Estados Unidos: uma rede de proteção social menor para os trabalhadores americanos, “então eles precisam trabalhar mais e tendem a ser mais produtivos”; maior abertura para a imigração, o que traz mais dinamismo para o mercado de trabalho, apesar de problemas na fronteira com o México; e o respeito à chamada destruição criativa.
“Se a empresa vai mal, que quebre, ninguém vai lá recuperar, enquanto na Europa, o Estado tenta entrar para salvar se [a empresa] é um símbolo nacional, é uma relação mais paternalista em relação a algumas empresas”, comparou.
Cordenonssi citou o exemplo das grandes demissões realizadas pelas big techs este ano, sem grandes repercussões internas nos Estados Unidos, “enquanto na Europa estavam negociando com governos, sindicatos como fazer”.
“É muito mais difícil [demitir funcionários e reestruturar empresas na Europa]. Os principais talentos, os grandes centros de desenvolvimento tecnológico, como é uma atividade de risco, migram naturalmente para os Estados Unidos, para diminuir esse custo da inovação. Na Europa, há uma mentalidade, parecida com a do Brasil, muito sindical, estatizante, de proteção. Isso sufoca esses setores mais dinâmicos da economia, é difícil inovar, melhor ir para os Estados Unidos”, afirmou o professor.
Fábio Gaião, Gazeta do Povo