sábado, 28 de novembro de 2020

Texto inédito de Jorge Luis Borges foi inspirado em carta descoberta por brasileiro

 Aos 19 anos, o colecionador Pedro Corrêa do Lago realizou precocemente o sonho de muitos amantes da literatura. Entrou na casa de Jorge Luis Borges, em Buenos Aires, e obteve uma entrevista de mais de uma hora.

Foi além. Perambulando numa loja de antiguidades naquela tarde, encontrou uma carta manuscrita pelo avô do escritor, o coronel Francisco Borges, na qual ele descrevia ter mandado matar um homem chamado Silvano Acosta.

Comprou o objeto e decidiu voltar à casa do autor de “O Aleph”. Borges o recebeu de novo e se impressionou com a carta, que nunca tinha visto.

Sabia há muito, por sua avó, que o marido dela tinha ordenado o fuzilamento de um desertor do Exército, mas nunca soube como se chamava. Ficou fascinado com a sonoridade de “Silvano Acosta”, um nome quase literário, e anunciou a Corrêa do Lago que escreveria um texto sobre aquilo. O que, até onde o brasileiro sabia, não se concretizara.

Aos 62 anos, Corrêa do Lago realizou outro sonho. Descobriu que não só tinha conversado com Borges, mas influído em sua literatura.

A viúva do escritor, María Kodama, tornou público este mês um acréscimo inédito à obra borgiana, chamado justamente "Silvano Acosta". O texto foi divulgado pela primeira vez no jornal argentino La Nación.

"Desde o momento em que nasci contraí uma dívida, assaz misteriosa, com um desconhecido que havia morrido na manhã de tal dia de tal mês de 1871", escreveu Borges ali. "Essa dívida me foi revelada faz pouco tempo, em um papel assinado por meu avô, que se vendeu em um leilão público. Hoje quero saldar essa dívida."

carta antiga
Carta do coronel Francisco Borges, avô do escritor Jorge Luis Borges,
encontrada por Pedro Corrêa do Lago - Alfieri Mauro

“Para mim foi uma surpresa que isso tenha mexido com ele dessa forma”, afirma Corrêa do Lago. “Achei que fosse apenas um pequeno elemento agregado à história que a avó contava para ele na sua infância, mais de 70 anos antes.”

O brasileiro especula que essa objeção contra o gesto do avô —vista como uma injustiça, um grande exagero cometido pelo militar— tenha habitado Borges desde criança.

“Mas eu não tinha como imaginar que ele se considerava obrigado a fazer uma reparação ao homem, contra o qual o avô dele cometeu um pecado irreversível. Achava que eu tinha supervalorizado Silvano Acosta pela minha história pessoal com Borges. Pude ver que não passou batido para ele também.”

O texto foi ditado pelo escritor a Kodama, sua então esposa, em 19 de novembro de 1985, segundo ela. Poucos dias depois, ele se mudaria para Genebra, onde morreu em junho do ano seguinte. São fortes os indícios de que “Silvano Acosta” foi o último trabalho de Borges em solo argentino.

Corrêa do Lago levanta ainda outra questão. Se o autor tomou conhecimento e posse da carta em 1977, por que demorou oito anos para escrever o texto baseado nela?

A hipótese do colecionador é que o autor de 86 anos fazia ali uma espécie de limpeza geral, uma prestação de contas.

Ele lembra que, toda vez que voltava a encontrar Borges —o que aconteceu meia dúzia de vezes nos anos que se seguiram—, acabava rememorando o episódio da carta, como que para se reapresentar e assegurar que o escritor, que tinha visão bastante debilitada, ainda se lembrava dele.

O último encontro de Corrêa do Lago com Borges havia sido no mesmo novembro de 1985, segundo o colecionador, dias antes da produção do texto. É possível que essa visita derradeira tenha reavivado a memória de Borges quanto a essa última pendência.

jorge luis borges com mão apontada atrás dele
O escritor argentino Jorge Luis Borges 
Daniel Mordzinski/Divulgação

É claro que é difícil apontar relações de causa e consequência em qualquer trabalho artístico, já que toda literatura é sempre marcada pelo mistério da subjetividade.

Mas o orgulho de Corrêa do Lago por ter participado, de alguma forma, da obra de um de seus escritores favoritos —“o maior da língua espanhola naquele século, assim como Proust é o maior da francesa”— é indisfarçável.

“Ter tido uma mínima contribuição na obra do homem já é imenso para mim”, afirma o brasileiro. “É a mesma desproporção entre a formiga e o Empire State Building.

Walter Porto, Folha de São Paulo