Ano passado, mais de 250 milhões de fiéis foram vítimas de intolerância religiosa no mundo, segundo a ONG Portas Abertas
Em 303 d.C., o imperador Diocleciano declarou guerra aos cristãos. Além de mandar confiscar livros em Roma e demitir fiéis do exército e do governo, ordenou a destruição de templos. Historiadores chamam o período de “A Grande Perseguição”, que também levou ao cárcere milhares de religiosos.
Entre 500 d.C. e 1500 d.C., os cristãos enfrentaram outros inimigos: bárbaros e islâmicos, que também destruíram inúmeros locais de culto. No século passado, durante a Revolução Russa (1917-1923), os episódios se repetiram. O mesmo na Guerra Civil espanhola (1936-1939): mais igrejas e fiéis foram atacados por manifestantes antigoverno.
Na quinta-feira 29, um terrorista islâmico relembrou que ataques contra a religião não ficaram no passado. Armado com faca, Brahim Aioussaoi, 21, atacou três pessoas na basílica de Notre-Dame de Nice, na França. Morreram o sacristão da igreja e duas mulheres, uma brasileira, que faleceu depois de fugir do local. O criminoso foi baleado e preso pela polícia.
O atentado ocorreu 11 dias depois dos protestos violentos no Chile, quando militantes de extrema esquerda atearam fogo a dois templos cristãos em Santiago, capital daquele país. Uma delas foi a Catedral da Assunção. Quando a estrutura em chamas desabou, centenas de manifestantes comemoraram. Antes, próximo ao local, outro templo, dos Carabineros, foi saqueado e queimado.
Contudo, os bombeiros conseguiram apagar as chamas antes que elas causassem maiores danos. “Queimar igrejas é uma expressão de brutalidade”, reagiu o ministro do Interior e Segurança, Víctor Pérez, ao destacar que durante o dia a polícia protegeu dos ataques violentos as estações de metrô de Santiago, os ônibus do transporte público e outros alvos. Veja as imagens:
A fé contra a parede
A ONG Portas Abertas publica um levantamento anual com informações sobre a perseguição a cristãos. Conforme os dados mais recentes, de 2018 a 2019, o número de templos atingidos (fechados, atacados, danificados ou queimados) aumentou cinco vezes em todo mundo, de 1.847 para 9.488.
A intolerância não se restringiu a templos. Ainda segundo a ONG, a quantidade de cristãos detidos subiu de 3.150 para 3.711. No total, 260 milhões de pessoas da comunidade — católicos, protestantes, batistas, evangélicos, pentecostais — foram “severamente perseguidos, contra 245 milhões em 2018”, de acordo com a organização.
Por “perseguição”, a ONG entende toda e qualquer violência, de uma opressão diária mais discreta até assassinato. Entre as razões para essa situação, a Portas Abertas considera a deterioração mundial da liberdade religiosa, sobretudo na China, que tem cerceado direitos e calado dissidências.
Há três anos, o governo chinês fez uma revisão da lei que regulamenta os grupos religiosos, a primeira desde 2015, com o aumento do controle sobre os locais de culto, limites à construção de estátuas e multas bem salgadas. Quem realizar atividades religiosas não autorizadas, por exemplo, corre o risco de desembolsar 300 mil yuans (R$ 149 mil).
Conforme noticiou Oeste em julho deste ano, o Partido Comunista liderado por Xi Jinping ordenou o fechamento de templos, a prisão de fiéis e a retirada de símbolos do Cristianismo. Na cidade de Chengdu, no sudoeste do país, a igreja cristã Early Rain foi fechada e substituída por uma loja comercial. Mais de 100 fiéis acabaram detidos enquanto praticavam suas liturgias.
Apesar do cenário assustador, o número de cristãos mortos diminuiu. Em 2018, foram 4.305 óbitos. No ano passado, o saldo reduziu para 2.983. Mesmo com a queda, o índice continua assustador: são mais de oito cristãos mortos por dia. Com todos os tipos de perseguições combinados, a Coreia do Norte segue líder no ranking anual da ONG, seguida por Afeganistão, Somália, Líbia, Paquistão, Eritreia, Sudão, Iêmen, Irã e Índia.
América Latina
Brasil e Chile ainda não constam no ranking dos locais que mais perseguem. “De maneira geral, o cristão pode expressar sua fé nesses países”, explicou Marco Cruz, secretário-geral no Brasil da Portas Abertas. Para ele, há casos isolados e a situação dos dois locais não é comparável a de outros, como em Cuba ou no Oriente Médio. “[No regime castrista], é proibido manifestações públicas da fé sem autorização do governo”, relatou Cruz. “Em Cuba, pessoas perdem cargos importantes, caso seja descoberta sua fé cristã”, acrescentou.
Francisco Borba, professor universitário e coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, enxerga no Brasil uma perseguição a cristãos nos campos político e cultural, que ele chama de “interdição de valores”. O especialista cita como exemplo a campanha do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de sugerir a abstinência sexual como parte de um programa de educação sexual nas escolas. A medida foi divulgada em janeiro deste ano e tinha como objetivo prevenir a gravidez na adolescência, segundo a ministra Damares Alves.
Conforme Borba, essa política deu certo em países que decidiram adotá-la para combater o vírus HIV. “A sugestão do ministério foi transformada, equivocadamente, em algo relacionado à religião”, acrescentou. Para o professor, a gritaria em torno do tema foi uma forma de tirar os cristãos do debate, o que vem ocorrendo em outros campos de discussão. “É um fenômeno real, que pode até ser nomeado ‘cristofobia’, se assim preferirem”, afirmou. “O que não se pode é negar que ele exista”.
Cristyan Costa, Revista Oeste