sábado, 1 de junho de 2019

Só São Paulo sabe entender quem não a entende, diz jornalista carioca

Viveiros sobre o Rio: “Inegáveis belezas naturais, simpatia e charme 
não são fatores suficientes para manter uma cidade como polo de 
qualquer coisa”. Foto: Acervo pessoal

O jornalista e escritor Ricardo Viveiros, que nasceu no Rio de Janeiro e mora há 40 anos em São Paulo, diz que quem gosta de gente gosta da capital paulista. “Muitas grandes cidades também têm gente, mas somente São Paulo sabe entender mesmo quem não a entende. Aqui, qualquer pessoa tem uma concreta chance de brilhar, de ser feliz”, comentou o protagonista da série Nêumanne Entrevista desta semana no blog. Para o autor de 43 livros, “o presidente eleito, embora seja natural e democrático que haja distintas opiniões, precisa de tranquilidade para governar, para pôr em prática seu programa de governo. Deve ser acompanhado de perto pela imprensa, pela sociedade, pelas lideranças de todos os setores e criticado no que erre. O ódio que se apresenta entre os dois lados, os prós e os contras, está destruindo a harmonia, a civilidade do tecido social e criando muros difíceis de ser derrubados. O governo precisa comunicar melhor, ser mais cuidadoso, claro e rápido. Falta-lhe alinhamento interno, há muita controvérsia pública que provoca desentendimentos e alimenta polêmicas desnecessárias”. E conclui: “Povo educado adoece menos, morre menos, produz mais, cresce mais.”
Viveiros empunha na passeata dos intelectuais pelas ruas do Rio 
em protesto contra a censura cartaz desenhado por Ziraldo 
“Vai tapar a boca da mmm…”. Foto: Acervo pessoal

Ricardo Viveiros é jornalista e escritor, com passagem pelas mídias impressa (jornais e revistas) e eletrônica (rádios e TVs). Há 32 anos preside a RV&A – Oficina de Comunicação, entre as maiores assessorias de jornalismo institucional e relações públicas do País. Autor de 43 livros em diferentes gêneros, alguns deles nos rankings dos mais vendidos no País.
É doutor (stricto sensu) em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Lecionou por 25 anos em cursos superiores de graduação e MBA. Profere palestras no Brasil e no exterior. Conhece 114 países, cobriu conflitos armados. Durante nove anos Viveiros foi o jornalista-chefe da assessoria de imprensa do sistema Fiesp/Ciesp (IRS-Sesi-Senai). Recebeu destacados prêmios nacionais e internacionais como jornalista e escritor, entre os quais a medalha da Organização das Nações Unidas (ONU) no Ano Internacional da Paz (1986).
É membro do conselho científico do portal CBC/Cartografia do Brasileirismo Comunicacional, um canal de difusão cognitiva e divulgação acadêmica mantido pela Cátedra Unesco-Umesp de Comunicação e Poscom/Escola de Comunicação, Educação e Humanidades da UME-SP, em parceria com Intercom/Confibercom/Alaic/Ciespal. É membro de outros conselhos de entidades do setor.
Viveiros autografa em companhia do biografdo, A Vida de Sydney Sanchez, que foi presidente do STF e da sessão do imipeachment de Collor no Congresso. Foto: Daniela Ramiro/Estadão
 Nêumanne entrevista Ricardo Viveiros
Nêumanne – Em 1969 e 1970 realizei um grande sonho da minha vida, o de morar no Rio de Janeiro. Era ainda, então, a Cidade Maravilhosa. Hoje, a antiga corte e capital da República chega a ser assustadora, embora ainda mantenha o réveillon de Copacabana e o carnaval como chamarizes turísticos. O que aconteceu neste interregno na cidade onde o senhor nasceu?
Ricardo Viveiros – O Rio de Janeiro já perdeu um pouco da sua importância ao deixar de ser a capital do País, em 21 de abril de 1960. Há quem defenda a ideia de que foi bom ter perdido essa condição. Entretanto, a rigor, o que mais contribuiu para o processo de deterioração da cidade foram os sucessivos governos municipais e estaduais que por incompetência, desmando, corrupção causaram um crescente e incontrolável clima como você definiu: “assustador”. Mas, ainda assim, milhões de pessoas procuram o Rio em seus eventos mais importantes, tal é o fascínio da “Cidade Maravilhosa”.

N – Um fato histórico que interrompeu a história do Rio de Janeiro foi a mudança da capital federal para o Planalto Central, que motivou a criação do Estado da Guanabara, que teve a condição de unidade federativa interrompida na fusão com o Estado do Rio de Janeiro, do qual passou a ser capital. Até que ponto essas rupturas influíram na decadência e praticamente na falência de uma cidade reconhecida como uma das mais bonitas e com uma população das mais simpáticas e festivas do mundo?
V – Como comentei antes, a perda da condição de capital do País tirou recursos e gerou um empobrecimento que, com o passar do tempo e a falta de gestão produtiva e honesta, acabou por também alimentar um crescimento da informalidade e da violência no Rio de Janeiro. Em alguns governos, como temos visto nos resultados das operações de combate à corrupção, houve conivência com o tráfico de drogas e armas, ocupações ilegais de terrenos com construções clandestinas e mais alguns  crimes. Por outro lado, caso o Rio permanecesse sendo a capital federal, talvez tivesse recebido um fluxo ainda maior de pessoas de outros Estados e, por consequência, seria proporcionalmente maior o crescimento de problemas como sub-habitações, informalidade, trânsito, violência, falta de atendimento à saúde, etc.
Com os filhos Felipe e Miguel e a mulher, Márcia, Viveiros no lançamento
do livro deste, O Poeta e o Passarinho, na Livraria da Vila Cidade Jardim. 
Foto: Paulo Giandalia/AE

N – Que explicações o senhor tem a dar sobre os destinos dos grupos de comunicação que eram os mais importantes do Rio: o Jornal do Brasil, cuja edição impressa foi interrompida e voltou a circular, mas sem a mesma importância de antigamente, e O Globo, que mantém o jornal impresso no topo dos números de circulação e os veículos eletrônicos na liderança de audiência e com maior influência na vida política e social do País e conservar ainda o charme de uma capital cultural do Brasil?
V – O Rio foi berço e sede de grandes grupos de comunicação, tive oportunidade de trabalhar em alguns deles. Além do Jornal do Brasil e de O Globo, também teve os Diários Associados (jornais, revistas, rádios e TVs), o Grupo Bloch (revistas, rádios e TV), Correio da ManhãDiário de Notícias e outros. Existe um aspecto interessante a ser considerado neste tema: embora todas as suas mazelas políticas, econômicas e sociais, o Rio nunca perdeu o charme, a relevância como centro cultural importante. Assim sendo, viu a morte de importantes veículos de comunicação em todos os meios e com força nacional, mas também segue na luta para se manter como centro de acontecimentos e reduto intelectual brasileiro. Mas entendo que, hoje, São Paulo é a capital cultural do Brasil, porque oferece um conjunto de condições para tanto.
Capa do livro de Viveiros O Poeta e o Passarinho, com ilustrações de Rubens Matuck. Reprodução
N – O que causou o clima de violência e permanente violação da lei que deteriorou de forma implacável a qualidade do Rio e quais serão, a seu ver, as chances de superar essa situação para tornar a cidade disponível para conseguir extrair benefícios de suas exuberantes vantagens comparativas?
V – Os desgovernos sucessivos, a corrupção, a conivência com o crime organizado, a falta de responsabilidade na gestão deterioraram a administração pública, criaram um ambiente hostil e inseguro. Inegáveis belezas naturais, simpatia e charme não são fatores suficientes para manter uma cidade como polo de qualquer coisa. Faltam ao Rio políticas públicas e gestão competente que garantam um mínimo de segurança, saúde, trabalho, educação e acesso à cultura. Sem qualidade de vida não há como oferecer atrativos a investidores, ou mesmo turistas. O desafio do atual governo é retomar o comando administrativo da cidade, eliminar a corrupção e restabelecer a ordem pública. Para só então voltar a ter uma economia forte e poder realizar mais e melhor as políticas públicas.

N – Da mesma forma que eu, que saí do Rio para vir instalar-me em São Paulo, o senhor também adotou a maior cidade do País como sua moradia permanente há bastante tempo. Qual é sua opinião sobre a cidade que o acolheu e o tem mantido aqui, apesar da fama que a capital paulista tem de ser inóspita e feia?
V – Estou em São Paulo há 40 anos, aqui tive e criei meus filhos e netos. Amo esta cidade porque a vida me ensinou a gostar de tudo o que é desafiador. Adoro o mistério cotidiano desse encontro de diferentes pessoas do mundo que acontece em São Paulo, a melhor e mais agitada esquina do planeta. Quem gosta de gente gosta de São Paulo. A beleza, o calor humano, os encantos exigem que você seja um garimpeiro de qualidades, porque nada está à mostra. Muitas grandes cidades também têm gente, mas somente São Paulo sabe entender mesmo quem não a entende. Aqui, qualquer pessoa tem uma concreta chance de brilhar, de ser feliz.
Viveiros entrega um exemplar do seu primeiro livro, lançado em 1968, 
ao então governador do Paraná, jornalista Paulo Pimentel. Foto: Acervo pessoal

N – Como o senhor, jornalista, escritor, professor, editor e empresário da comunicação, se prepara para sobreviver à crise que abala a imprensa e outros veículos tradicionais daquilo que o canadense Marshall Mc Luhan chamava de A Galáxia de Gutenberg, num universo que transfere a produção de conteúdos, cada vez mais requisitada, para a comunicação instantânea, dependente da cibernética, relatada por Norbert Wiener?
V – Aos 69 anos de idade e 53 de profissão meu passado pessoal e profissional registra que sempre fui uma pessoa comprometida com inovação, pesquisa, coragem para investigar e criar. Um grande curioso nasceu comigo e vive em mim desde sempre. Nossa área de trabalho está passando por uma grande transformação. Mais uma, na verdade. Porque o rádio, a TV, o jornal, a revista, o livro têm evoluído bastante ao longo do tempo. Tomando a TV só para dar um exemplo, saiu daquela imensa caixa pesada, com tubo e imagens tremidas em preto e branco para a tela de um pequeno e fino celular com cores e nitidez perfeitas. Portanto, já faz tempo, tenho me adaptado dia a dia às novas tecnologias, aos avanços na comunicação. Aposentei a máquina de escrever logo que apareceu o computador, adotei o tablete e o iPhone e procuro, sempre, não perder a emoção mesmo usando a tecnologia. Estou sempre atento à plataforma que o público quer para receber o que penso, falo, escrevo. Mas, seja qual for, o que sempre vai prevalecer é a capacidade de prender a atenção do leitor.
Entre O’ zgu’n Arman e o empresário Alencar Burti, Viveiros em lançamento
 de livro de sua autoria em São Paulo. Foto: Denise Andrade/Estadão

N – Até que ponto o brasileiro “cordial”, descrito pelo historiador Sérgio Buarque de Hollanda, não no sentido corriqueiro de civilizado, educado ou delicado, mas, sim, por decidir mais pelo coração do que pela cabeça, nossa tendência ao comportamento regido pelo fígado, e não pelo cérebro, como observava a poetisa americana Elizabeth Bishop, e nossa cultura dicotômica entre a casa e a rua, analisada pelo antropólogo Roberto DaMatta, nos estão devolvendo a um comportamento da idade das cavernas em plena era do esplendor tecnológico?
V – Pois é… Reflito muito sobre isso. Em especial, porque tenho filhos e netos que amo incondicionalmente. Até que ponto estamos nos tornando falhas imitações de robôs? Estamos perdendo sentimentos? Estamo-nos materializando na competitiva corrida por uma suposta alta condição social, sem compromisso com algo bem simples: a felicidade? Acredito que por sermos animais inteligentes, a ponto de criarmos toda essa fantástica tecnologia, devemos cada vez mais usá-la para sermos felizes, para alimentar emoções sob liberdade com responsabilidade.
N – Qual a contribuição que sua geração, que recorreu às armas para tentar derrubar o regime militar e terminou tendo esmagados seus projetos de implantar o comunismo nos trópicos, deu, a seu ver, para a conturbada redemocratização, que, abalada pela extinção da esperança da Nova República com a morte de Tancredo Neves, flertou com o populismo corrupto de Collor e do PT de Lula e dos combatentes da guerra suja, namorou a estabilidade herdada da breve gestão de Itamar Franco e agora parece mergulhar num campo minado de ódio ideológico, retaliação ininterrupta e extrema intolerância?
V – Sou de um grupo da minha geração que sonhou um justo equilíbrio social, não queria ditadura nem de direita nem de esquerda. Nossa preocupação era que todos tivessem saúde, segurança, educação, trabalho, moradia, cultura e, assim, por méritos próprios construíssem sua vida. Esse mesmo grupo, por falta de opções, uniu-se a outros mais radicais para derrubar a ditadura que se instaurou, inconstitucionalmente, após 1964. E pagou caro por isso. O PT foi um caminho que inicialmente se mostrou viável. Acabou por decepcionar todo o País, e não apenas aquele grupo da minha geração que, como muitos, acreditou num partido do povo, pelo povo, para o povo e, assim, capaz de conquistar justiça social. O que se observa, ao longo das últimas décadas, é que a falta de educação e cultura tem produzido escolhas políticas equivocadas. Por isso, historicamente, aos ditadores não interessa povo educado, culto, informado. Os intelectuais, os jornalistas, os artistas são sempre os mais perseguidos por eles.
Viveiros e sua mulher, Márcia, na exposição Nitsche e Tozzi 
no Espaço Cultural Citi, em São Paulo. Foto: Juan Guerra/AE

N – Como ficcionista e analista dos fenômenos sociais, o senhor se sente habilitado para nos explicar em que momento a dicotomia política e ideológica contaminou as relações pessoais, familiares ou de amizade, por que isso ocorreu e se ainda há alguma esperança de que esta seja uma fase a ser enfrentada e superada?
V – As últimas eleições presidenciais, pelos escândalos de corrupção e uma natural revolta da sociedade, estabeleceram um radicalismo muito grande. Algo destrutivo e que dividiu o País, desrespeitando a lógica e o bom senso. Mesmo após a escolha do novo presidente, segue a campanha dos prós e dos contras, como se ainda não tivéssemos um governo eleito. Essa divisão da sociedade é ruim para todos, e não deve ser alimentada. O presidente eleito, embora seja natural e democrático que haja distintas opiniões, precisa de tranquilidade para governar, para pôr em prática seu programa de governo. Deve ser acompanhado de perto pela imprensa, pela sociedade, pelas lideranças de todos os setores e criticado no que erre. O ódio que se apresenta entre os dois lados, os prós e os contras, está destruindo a harmonia, a civilidade do tecido social e criando muros difíceis de ser derrubados. O governo precisa comunicar melhor, ser mais cuidadoso, claro e rápido. Falta-lhe alinhamento interno, há muita controvérsia pública que provoca desentendimentos e alimenta polêmicas desnecessárias.
Capa do livro de Viveiros Laudo Natel, um bandeirante, biografia 
do ex-governador de São Paulo, editada pela Imprensa Oficial e 
lançado em 2011. Reprodução

N – O senhor tem comemorado com justificáveis euforia e emoção o sucesso escolar de sua prole fora do País. A seu ver, nesta marcha insensata que, ao longo de nosso lifetime, tem reduzido a atividade educacional no Brasil à marginalidade em todos os sentidos etimológicos e semânticos dessa palavra, é possível deparar com alguma esperança de que, em algum momento no futuro não tão distante, os descendentes de nossos filhos poderão orgulhar-se de seus feitos sem ter de deixar o País?
V – Não há maior investimento do que na educação e na cultura de quem amamos. Depois de formados aqui, no Brasil, meus filhos e netos têm buscado aprimoramento no exterior. Acredito que a educação e a cultura – no meu entender, têm igual relevância e devem avançar sempre juntas – estão evoluindo no Brasil. Mas, claro, há muito, muito ainda a melhorar para atingir um patamar de qualidade que todos merecemos. É preciso investir pesado no ensino infantil, fundamental e médio, mas sem descuidar do superior. Junto com o médio deve haver o técnico, como opção. Escolas públicas seguras, amplas, arejadas, iluminadas e bem equipadas, com funcionários e professores preparados e com salários dignos, que tenham boas condições de trabalho. Sob regime de tempo integral, os alunos recebendo, em paralelo, cuidados de higiene, saúde, nutrição, cultura, esporte e lazer. Formar cidadãos livres e capazes de construir sua vida pelos próprios méritos, sem depender do Estado depois de formados, e sim em condições de participar desse mesmo Estado contribuindo para o seu efetivo papel diante da sociedade. Esse é o desafio a ser vencido por todos nós, pelos governos nos três níveis. Deveríamos investir, pelo menos, 10% do PIB em educação. Povo educado adoece menos, morre menos, produz mais, cresce mais.
Jornalista com passagem por redações de grandes jornais e dono 
de uma bem-sucedida assessoria de imprensa, Viveiros lançou 43 livros. 
Foto: Denise Andrade

José Nêumanne, O Estado de São Paulo