Para a colunista da Folha, a capital da Rússia é melhor que Paris em tempo de paz
N que ocupava quase uma página e meia da Folha Ilustrada. “MOSCOU ILUMINADA ESPERA POR 2025”, informava a manchete com o endosso do subtítulo: “Apesar da guerra contra a Ucrânia iniciada em 2022, a vida segue praticamente inalterada”. Meu espanto foi abrandado pela dupla que relatava o milagre: Mônica Bergamo e Serguei Monin. (Não conheço Serguei, que se apresenta nas redes sociais como correspondente do site Brasil de Fato na Rússia, nas rodas de choro e nos blocos. Ela conheço bem — mais do que desejaria.)
Redatores de notas curtas não sabem escrever textos corridos. Previsivelmente, o que se vê é um desfile desconexo de parágrafos mal-ajambrados e separados por estrelinhas. É preciso chegar ao quinto para saber que “a coluna foi a Moscou em novembro para entrevistar Dimitri Peskov, porta-voz de Vladimir Putin há duas décadas, e percorreu a metrópole”. Colunas não viajam. São homens e mulheres que embarcam em aviões e se hospedam em hotéis. Serguei mora na Rússia ou em São Paulo? Sozinha ou acompanhada, Mônica foi à Rússia a convite ou patrocinada pelo próprio jornal? Nesta hipótese, a Folha de S.Paulo merece um 10 com louvor no quesito desperdício com excursões inúteis
Notícia publicada na Folha de S.Paulo (29/12/2024) | Foto: Reprodução/Folha de S.PauloEntrevistar Vladimir Putin é uma coisa. A caricatura de czar mente mais do que respira, mas um bom jornalista sabe desmascarar farsantes valendo-se apenas de perguntas. Entrevistar porta-voz é outra coisa. Quem exerce esse tipo de ofício não tem opinião pessoal e jamais diz o que pensa ou acha de coisa alguma. É uma voz sem direito a pensamento próprio. O texto não informa se a entrevista foi feita. O conteúdo berra que Mônica virou porta-voz do porta-voz. “A maioria dos brasileiros que sabem que uma pessoa vive em Moscou, ou que visitou a cidade, pergunta antes de mais nada como anda a vida por lá, imaginando que, por causa da guerra, ela é sombria”, afirma o palavrório de abertura antes de estacionar numa estrelinha.
O segundo parágrafo agrupa perguntas: “As ruas estão desertas? As lojas e os restaurantes estão fechados? Há falta de luz, água? As prateleiras dos supermercados estão vazias? Dá para comprar macarrão, carne? Como os russos de Moscou estão vivendo? Como eles se viram sem cartão de crédito?”. Respostas em português indigente, separadas por uma estrelinha, ocupam os dois bloquinhos seguintes. O primeiro jura que “ruas, restaurantes e lojas estão abertos e cheios”. O segundo celebra o sucesso do cartão de crédito MIR, “criado pelo Banco Central da Rússia em 2015, no contexto das sanções ocidentais contra o país por causa da anexação da Crimeia, e amplamente usado depois da guerra da Ucrânia, quando as bandeiras estrangeiras saíram completamente do país”.
A colunista se entusiasma com a notícia de que “estrangeiros podem trocar dólares por rublos em dezenas de bancos”. (Lamentavelmente para dez em cada dez forasteiros que cedem à tentação de visitar a Rússia, não é possível trocar rublos por dólares). Ela não revela em que moeda foram financiados os prazeres de que desfrutou em 24 de novembro. Naquele inesquecível domingo de inverno, “com uma sensação de segurança semelhante à que se experimenta nas grandes capitais europeias, graças aos índices de criminalidade baixos se comparados aos das cidades brasileiras, circulei por uma cidade intensamente iluminada”, lembra a viajante. Não porque as festas de fim de ano estavam perto: nessa época, Moscou fica escura já no meio da tarde.
Pessoas participam das celebrações de ano novo perto da Torre Spasskaya, do Kremlin, e da Catedral de São Basílio, no centro de Moscou, Rússia (1º/1/2025) | Foto: Reuters/Evgenia Novozhenina
O passeio incluiu o Selfie, “um restaurante de cozinha autoral que recebeu uma estrela do guia Michelin em 2022”. Tal preciosidade gastronômica está alojada “num centro comercial onde há lojas de eletroeletrônicos, casas de vinho e supermercados com prateleiras abastecidas em que se pode encontrar de Coca-Cola a vinhos franceses, passando por batatas Pringles. Um piso abaixo fica uma churrascaria que também estava lotada nesse dia, com mesas ruidosas, algumas delas celebrando aniversários. Mil dias depois do início da guerra, não há racionamento na capital”. Em quatro palavras: vista por uma enviada da Folha, Moscou é uma festa. “É que a cidade é tratada pelo governo como uma fortaleza inexpugnável, que não pode ser abalada de forma alguma pela guerra”, explica a colunista.
Faltou combinar com os ucranianos, revela o falatório seguinte. “Essa blindagem já foi desafiada. Neste mês, um atentado com um patinetebomba matou um general russo em uma avenida a 7 km do Kremlin. Em maio, um drone atingiu o Palácio do Senado, no Kremlin. Depois disso, o GPS passou a sofrer interrupções no centro da cidade, o que traz um dos poucos inconvenientes da guerra para os moscovitas. Ao chamar um carro por aplicativos, o passageiro provavelmente vai ter problemas para encontrá-lo no endereço indicado. Isso ocorre porque com a instabilidade do sistema que permite a localização com precisão, o motorista acaba estacionando sempre um pouco antes ou um pouco depois do endereço correto. Seguir aplicativos de mapas ficou mais complicado.”
Um parágrafo confessa que, em relação a 2019, o fluxo de turistas originários da União Europeia e dos Estados Unidos sofreu uma queda superior a 96,1%. A principal culpada foi a pandemia de covid, avisa a colunista. A guerra e suas consequências — suspensão de voos diretos entre Moscou e dezenas de capitais, por exemplo — apenas agravou o que já era preocupante. “Mas em 2023 o turismo russo começou a se recuperar com o aumento no fluxo de visitantes da China e de países do Oriente Médio”, ressalva Mônica. “Foram emitidos 340 mil vistos estrangeiros para a Rússia, China e Turcomenistão lideram os pedidos.”
O jornalista americano John Hersey entrevistou meia dúzia de japoneses que haviam sobrevivido à explosão da primeira bomba atômica para escrever o clássico Hiroshima, que transporta qualquer leitor sensível para o mais trágico momento da História. Para reconstruir a Moscou das fantasias de Putin, a dupla da Folha precisou de um único e escasso russo: Andrei Tikhamerov, dono de uma loja de produtos de cerâmica. Trecho do depoimento: “Nunca contamos muito com os turistas, porque eles vinham mas compravam pouco. Agora surgiram turistas árabes em grande quantidade, e eles querem comprar pequenas xícaras de café”. Uma estrelinha interrompe o relato para enfeitá-lo com um aparte da entrevistadora: “As vendas seguem, a vida segue”.
Outra estrelinha e Tikhamerov prossegue: “As pessoas já se acostumaram com o conflito. Eu mesmo não notei grandes diferenças. Os carros ficaram mais caros. Meu carro já não está muito bom, e compreendo que não posso adquirir um novo. É preciso consertar o antigo, dirigir com o que se tem. Minha vida quase mudou”. Estaria à beira da perfeição se não fosse a teimosia dos parentes ucranianos. “Mas o que afinal nos difere? A única diferença é que nós vivemos aqui, vocês vivem aí.” O problema é a propaganda ucraniana, que insiste em enxergar nações distintas onde só existe a Mãe Rússia.
O colosso de vogais e consoantes produzido por Mônica e Serguei tem quase 3 mil palavras. “Guerra” aparece várias vezes. “Invasão”, nenhuma. É a cara do jornalismo estatizado à brasileira. Publica-se o que convém, omite-se o que desagrada ao consórcio no poder. Vale essa narrativa, codinome mais recente da velha versão. Desde Gutenberg, quase sempre há mais de uma, mas a única real é a que se ampara nos fatos. O resto é falsificação gerada por idiotia ou safadeza. Não existe a verdade de cada um. A verdade factual é uma só: é o Ucrânia Guerra Folha de S.Paulo Rússia Vladimir Putin 1 comentário contrário da mentira. Perde tempo quem briga com fatos, que sempre acabam prevalecendo.
A verdade às vezes desmaia, pode até ficar sepultada por longo tempo. Mas não morre nunca. Sempre ressurge e triunfa. Devotos de seitas lideradas por algum Homem Providencial do momento não sabem disso.
Nunca souberam.
Jamais saberão.
Augusto Nunes - Revista Oeste