Na última segunda-feira (15), o ministro Luis Felipe Salomão, que exerce a função de corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), deu uma decisão liminar determinando o afastamento de quatro juízes que atuam ou atuaram na operação Lava Jato: a juíza Gabriela Hardt, que condenou Lula a doze anos de prisão no caso do sítio de Atibaia, o juiz Danilo Pereira, atual titular da vara em Curitiba responsável pelos casos da Lava Jato e os desembargadores Thompson Flores e Loraci Flores, ambos membros da turma que julga os casos da operação no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). A decisão, de tão absurda, cabia só nos mais deslumbrantes - ou delirantes - sonhos de Lula, que expressou um sedento desejo de vingança contra a Lava Jato.
A decisão continha inúmeras ilegalidades, que foram brilhantemente expostas, no dia seguinte, pelo ministro Luís Roberto Barroso em um voto corajoso e impecável durante o julgamento do caso no CNJ. Barroso foi claro ao dizer que a medida de Salomão era “ilegítima, arbitrária e desnecessária”, afirmando, com todas as letras, que “estão se vingando dessa moça”.
Barroso está certo, assim como estava certo ao expor a vingança do sistema anos atrás, durante o julgamento vergonhoso no Supremo que considerou Sérgio Moro suspeito no caso Lula. Após o voto de Barroso, a maioria do CNJ revogou o afastamento dos juízes federais, mas lamentavelmente manteve o dos desembargadores.
O afastamento dos juízes e desembargadores representou mais um passo na vingança do sistemão contra a Lava Jato, que mantém até hoje níveis altíssimos de aprovação entre os brasileiros e resultados inéditos na história do nosso país, como mostrei neste artigo. Contudo, há quem acredite que o objetivo final dos corruptos descondenados é maior: prender qualquer um que tenha atuado na operação. A narrativa que está sendo preparada contra os agentes da Lava Jato, revelada por Salomão no dia seguinte por meio de um relatório da correição extraordinária conduzida por ele no CNJ, é de que Sérgio Moro, Gabriela Hardt, eu e outros procuradores da Lava Jato queríamos desviar mais de R$ 2,5 bilhões da Petrobras. Difícil decidir entre chorar e rir.
Segundo o CNJ, o dinheiro que a Lava Jato devolveu para a Petrobras tinha por objetivo voltar aos juízes e procuradores por meio de uma multa dos americanos paga no Brasil e destinada para a constituição de uma fundação “privada”, em um grande esquema de corrupção e desvio de dinheiro público. Está sentado, querido leitor? Cuidado para não cair.
É isso mesmo: o sistemão agora quer que você acredite que quem desviou dinheiro da Petrobras não foram os políticos e empresários corruptos durante os governos do PT
Ele quer que você acredite que os corruptos foram os juízes e procuradores que corajosamente combateram a corrupção. Pior: ele quer que você acredite que o dinheiro foi desviado ao ser devolvido para as vítimas dos crimes.
Essa é simplesmente a teoria da conspiração mais insana que já foi inventada até hoje sobre a Lava Jato, algo tão fantástico e tão surreal que eu nunca imaginei que chegariam a um nível de ataque tão baixo aos agentes da lei da operação. É algo que, mais uma vez, de tão grande, de tão inédito - “nunca antes na história deste país” houve nada parecido! -, só caberia nos sonhos de um presidente da República. Por coincidência, essa teoria veio pelas tintas de um ministro nomeado por Lula e que ambiciona, segundo a imprensa, uma vaga no STF. Também por coincidência, as correições sobre a Lava Jato foram impulsionadas na época em que surgiram vagas no STF.
Desnecessário dizer que a acusação é obviamente falsa, porque a Lava Jato devolveu o dinheiro para a Petrobras apenas e unicamente em obediência à lei, já que a estatal era a vítima dos crimes que a operação revelou, todos cometidos durante os governos petistas. Não havia, como nunca houve, uma grande conspiração entre agentes públicos para receber depois esse dinheiro. Desnecessário dizer, também, que esse dinheiro nunca beneficiou ninguém da Lava Jato e nem passou pelas contas bancárias pessoais de ninguém: os recursos sempre ficaram depositados em contas judiciais da Caixa Econômica Federal, recebendo a destinação legal adequada, fiscalizada em várias correições pelas Corregedorias e Conselhos do Ministério Público e Judiciário.
A verdade, como sempre, é muito mais simples do que a teoria da conspiração maluca de Salomão, que quer punir os procuradores com fatos que já são públicos desde há 5 anos atrás, numa reescrita corajosa da história.
Os Estados Unidos puniram a Petrobras por violações à lei americana com base na cooperação da própria empresa com as autoridades daquele país. Já o acordo entre a Lava Jato e a Petrobras permitiu que bilhões que iriam para os Estados Unidos ficassem no Brasil. O fato de o dinheiro ter ficado no Brasil e ter beneficiado o nosso país mostra que o acordo feito pela Lava Jato com a Petrobras era um bom acordo, como confirmou o ministro Barroso em seu voto. Além do mais, o único objetivo dos procuradores foi atingido, que era garantir que o dinheiro das multas beneficiasse os brasileiros e não estrangeiros, já que os crimes lesaram, acima de todos, os cidadãos brasileiros.
Outros fatos demolem totalmente a teoria da conspiração histriônica de Salomão. A fundação prevista no acordo era uma fundação de interesse público, com governança, compliance e fiscalizada pelo Ministério Público estadual, não representando qualquer benefício privado ou particular para ninguém. Essa forma de destinação de reduções seguiu boas práticas internacionais como as adotadas nos casos Siemens e Alstom. Além disso, a iniciativa foi considerada legal e legítima por oito órgãos diferentes do nosso sistema de justiça. Contudo, o relatório de Salomão não refuta nem enfrenta uma linha dessas múltiplas análises que concluíram que o trabalho foi regular.
A fundação nunca chegou a ser criada, pois o STF anulou o acordo da Lava Jato com a Petrobras. Segundo o tribunal, só o orçamento da União, que é uma lei formal que expressa a vontade do povo, poderia dar destinação a verbas públicas. Por isso, o STF sequestrou os valores. Contudo, a lei prevê e a prática consagra a destinação dos recursos em acordo de direitos difusos feitos pelo Ministério Público, como era o caso. Some-se que, no momento seguinte ao sequestro do dinheiro, a própria corte o destinou para onde ela queria. Os recursos foram divididos, por decisão suprema, entre a educação e o combate às queimadas na Amazônia. No fim das contas, o que ficou parecendo mesmo é que o STF padecia de um caso de inveja crônica, porque a verba foi destinada sem lei, sem inclusão no orçamento.
Enquanto os acusados ou condenados por corrupção têm suas barras aliviadas e impunidade garantida pelo STF - como Lula, que teve seus processos anulados pelo Supremo - o CNJ afastou há meses o juiz da Lava Jato no Rio de Janeiro, Marcelo Bretas, sem que tenham vindo a público provas consistentes de crimes ou ilegalidades. O procurador que coordenou a Lava Jato do Rio de Janeiro foi punido com demissão, convertida em suspensão, por fazer algo que a lei manda, que é dar publicidade a uma acusação criminal. Eu fui cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pelas mãos de um ministro relator citado por um delator na operação, sem falar do que acabou de acontecer com os juízes federais e desembargadores.
São agentes públicos que jamais sofreram qualquer processo disciplinar na sua história antes da Lava Jato, ao longo de décadas. Quanta coincidência que sejam punidos justamente quando trabalham na operação que condenou réus poderosos. E quanta coincidência que os carrascos dos agentes da lei tenham sido escolhidos por esses mesmos réus ou então busquem influenciar as escolhas desses réus. Haverá juízes e ministros incorruptíveis, mas como garantir a isenção ou um julgamento justo num ambiente impregnado de ambições, interesses e pressões políticas? Parece impossível. Os fatos mandam seu recado para os outros juízes e promotores: quem ousar enfrentar poderosos sofrerá uma implacável perseguição. “Não combatam a corrupção no Brasil, ou responderão com suas vidas, suas carreiras, seus patrimônios”.
O caso contra juízes da Lava Jato no CNJ avançará, o que deve ser alvo de atenção porque, em meio a tantas coincidências, o universo conspira para que o verdadeiro crime por aqui seja combater a corrupção. Bom, se não for o universo que conspira, é o Brasil dos corruptos que conspira. Ou, talvez, sejam os corruptos do Brasil que conspiram. Vai saber. Haja conspiração. O que temos certeza é que o sonho dos corruptos está se realizando: roubar impunemente e punir quem tenta puni-los. É a subversão da lei: a espada da Justiça está sendo usada contra aqueles que lutam por justiça. Fica entalado em nossa garganta um grito: basta de corruptos! Basta de perseguição! Basta de conspiração! Até quando suportaremos tanta injustiça neste país?
Deltan Dellagnol, Gazeta do Povo