sexta-feira, 25 de março de 2022

'A falência do futebol brasileiro', por Edilson Salgueiro e Fábio Matos

 



Como o Brasil deixou de ter o melhor futebol do mundo. E qual a receita para voltar a brilhar


O futebol brasileiro respira por aparelhos. Décadas de amadorismo e desorganização nas federações e nos clubes transformaram o esporte de maior apelo nacional em algo desinteressante. A qualidade técnica das partidas decaiu a tal ponto que atualmente não cativa nem os torcedores mais fanáticos.

Mas não é só isso. O calendário é abarrotado de jogos — o que contribui para a baixa qualidade das partidas —, os treinadores brasileiros pararam no tempo quando comparados aos europeus e as equipes de arbitragem são despreparadas e mal remuneradas. O preço dos ingressos é alto o bastante para afastar a população dos estádios. O pay per view é um luxo.

Essa série de problemas explica os sucessivos fracassos do futebol brasileiro nas competições internacionais. A Seleção Canarinho, por exemplo, não conquista a Copa do Mundo desde 2002. São duas décadas sem levantar o troféu. Caso não vença a próxima edição do torneio, que será realizada no fim deste ano, o futebol pentacampeão amargará 24 anos de jejum — o maior de sua história, junto com o período entre 1970 e 1994. A situação não é melhor quando o assunto são os clubes. O último representante brasileiro a vencer o Mundial da Fifa foi o Corinthians, em 2012. De lá para cá, apenas as equipes europeias levaram a taça.

A mudança de rumo exige reformas estruturais, especialmente na Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Atualmente, a entidade máxima do esporte no país é responsável pela organização de 17 torneios de alcance nacional, incluindo o Campeonato Brasileiro (em quatro séries) e a Copa do Brasil. Além disso, a CBF administra as seleções masculina e feminina, o que inclui a negociação de contratos de publicidade, a estruturação do calendário de jogos e o planejamento logístico. “A CBF deveria promover o futebol do país, mas só pensa na Seleção Brasileira”, criticou o jornalista e professor Celso Unzelte. “Tinha de pensar nos clubes, torná-los mais conhecidos. A criação de ligas independentes, por exemplo, pode ajudar nesse processo de profissionalização do futebol brasileiro, desde que seja organizada por pessoas competentes.”

Premier League: um case de sucesso

A organização de campeonatos nacionais por meio de ligas geridas pelos próprios clubes existe há três décadas. Premier League (Inglaterra), Bundesliga (Alemanha), La Liga (Espanha), Lega Calcio (Itália) e Ligue 1 (França) são exemplos bem-sucedidos dessa iniciativa. Nesse modelo, os clubes são responsáveis pela organização do calendário de jogos, pelos contratos de publicidade e pelos direitos de televisão. É um pacote de vantagens imensurável para as equipes, que têm autonomia para decidir em conjunto as melhores decisões a serem tomadas. Não à toa, as ligas inglesa, alemã, espanhola, italiana e francesa estão entre as cinco mais rentáveis do mundo, segundo relatório da consultoria Deloitte.

“O segredo da Premier League é a boa governança”, explicou Rick Parry, o primeiro CEO da liga inglesa, em entrevista ao portal Globo Esporte. “Os princípios são transparência, simplicidade, consistência e responsabilidade. A liga tem personalidade jurídica própria, uma sociedade anônima, que pode celebrar contratos por direito próprio.”

Na Inglaterra, as equipes têm oportunidades iguais, mas são recompensadas pelo sucesso. As receitas são divididas da seguinte forma: 50% igualmente para todos, 25% com base na quantidade de jogos transmitidos pela TV e 25% com base na posição final do campeonato. O time vencedor recebe mais dinheiro, e aquele que está mal posicionado recebe menos. Mas a diferença entre o líder e o lanterna é de menos de duas vezes, no futebol brasileiro é de quase nove.


Essa disparidade provocou mudanças na maneira como os clubes brasileiros negociam seus direitos de transmissão. Os dois principais campeonatos estaduais do país, Paulistão e Cariocão, deixaram de ser transmitidos pela TV Globo e passaram a ser exibidos na Record TV. O motivo é simples: a emissora de Edir Macedo ofereceu às equipes condições financeiras melhores.

Mas as mudanças não param por aí. As federações também apostam nas plataformas de streaming para transmitir as partidas. Dezesseis jogos do Cariocão devem ser exibidos no canal da Twitch do jornalista Casimiro Miguel, o maior streamer esportivo brasileiro. O torneio também será transmitido, na mesma plataforma, pela Ronaldo TV e pelo Cariocão Play.

Quem surgiu para mudar o paradigma de gestão dos clubes brasileiros foi o ex-jogador Ronaldo, o Fenômeno

O Paulistão terá jogos exibidos na TV aberta pela Record. O pay per view do campeonato continua no Premiere, que pertence ao Grupo Globo. Na internet, as partidas serão exibidas pelo serviço de streaming HBO Max. Atenta às mudanças, a Federação Paulista de Futebol (FPF) decidiu transmitir os jogos pelo YouTube. Na semana passada, por exemplo, 3 milhões de pessoas assistiram simultaneamente ao clássico entre Palmeiras e Corinthians sem pagar R$ 1 por isso. Até o fechamento desta reportagem, mais de 12 milhões de internautas haviam visto a transmissão da FPF.


A estratégia das federações é similar à de outros esportes, como a NBA, que usa o poder de influenciadores digitais na divulgação das partidas.

Realidade distante

A criação de uma liga do calibre da Premier League depende da profissionalização dos clubes, algo distante da realidade brasileira. De acordo com um levantamento realizado pela consultoria Ernst & Young, 92% das equipes das cinco maiores ligas europeias funcionam como empresas. No Brasil, o número é exatamente o inverso (8%). O Bayern de Munique, por exemplo, divide a administração do futebol com três patrocinadores que viraram acionistas — Audi, Adidas e Allianz. Manchester United e Juventus, por sua vez, possuem ações negociadas na Bolsa de Valores. O Manchester City pertence ao fundo de investimentos liderado por Mansour bin Zayed Al Nahyan, membro da família real dos Emirados Árabes Unidos. O Paris Saint-Germain é administrado por um hedge fund ligado ao governo do Catar. Há ainda RB Leipzig, Wolfsburg, Bayer Leverkusen e Arsenal, todos geridos com a lógica empresarial: austeridade fiscal, investimento em ciência esportiva e resultado.

Fenômeno dentro e fora de campo

Quem surgiu para mudar o paradigma de gestão dos clubes brasileiros foi o ex-jogador Ronaldo Nazário. Recentemente, o Fenômeno anunciou a compra de 90% das ações do Cruzeiro, um dos times mais tradicionais do futebol nacional, hoje lutando para voltar à série A do Campeonato Brasileiro. Afundada em dívidas que ultrapassam R$ 1 bilhão, a Raposa tornou-se Sociedade Anônima do Futebol (SAF). “Peço ao torcedor que se conecte outra vez ao clube, porque vamos precisar de muita força e união”, disse o ex-atacante. “Temos muita ambição de fazer o Cruzeiro crescer novamente.” Para efetivar a compra do time, Ronaldo desembolsou R$ 400 milhões.

Nesse modelo de administração, a SAF assume todas as dívidas do clube adquirido. É do grupo gestor a responsabilidade pela formação do projeto esportivo da equipe, incluindo a definição do orçamento, a negociação de contratos publicitários e a contratação de jogadores. Atualmente, a maioria dos clubes brasileiros é composta de associações sem fins lucrativos, geridas por um seleto grupo de associados. “O fato de os clubes serem organizados como associações, com processos políticos para a escolha dos dirigentes, enfatiza que esse modelo antigo não privilegia a meritocracia nem permite a participação dos torcedores”, criticou o advogado José Francisco Manssur, especialista em Direito esportivo e um dos formuladores do Projeto de Lei do Clube-Empresa. “Isso é um fator que tem causado problemas para o desenvolvimento do futebol brasileiro. O modelo associativo foi importante, mas ficou obsoleto.”

Segundo Manssur, que atualmente participa do processo de transformação da Portuguesa em SAF, a aquisição do Cruzeiro pode ser o pontapé inicial para a profissionalização do futebol brasileiro. “É interessante notar que o primeiro clube de repercussão no Brasil tenha sido negociado com um atleta mundialmente conhecido, uma pessoa que os brasileiros acompanharam a vida inteira”, observou o advogado. “Não foi um investidor estrangeiro ou um fundo de investimentos sem rosto; foi uma personalidade mundial. O fato de Ronaldo ter sido o responsável pela compra de um clube humanizou o processo da SAF.” Mais quatro equipes tradicionais pretendem transformar seu modelo de gestão: Coritiba, Athletico Paranaense, América Mineiro e Chapecoense. Red Bull Bragantino, Botafogo e Cuiabá, todos da primeira divisão, já são clubes-empresas. Em estágio avançado para se transformar em sociedade anônima, o Vasco depende apenas do aval dos conselheiros e dos sócios. O cruz-maltino deve ser adquirido pela empresa Partners 777, que pretende investir R$ 700 milhões na equipe.

Dentro das quatro linhas

A desorganização estrutural resulta inevitavelmente na baixa qualidade dos jogos. De acordo com estudo elaborado pela empresa francesa de estatísticas SkillCorner, a porcentagem da distância percorrida em alta intensidade no Campeonato Brasileiro está abaixo da de ligas pouco tradicionais, como a sueca, a polonesa e a grega. O levantamento considera como corridas de alta intensidade aquelas com velocidade maior do que 19,8 quilômetros por hora. Assim, as ligas com maior porcentagem de corridas de alta intensidade são consideradas mais intensas, e as com menor porcentagem são avaliadas como menos intensas.

Na Premier League, por exemplo, os jogadores percorrem aproximadamente 10 quilômetros por partida. Dessa distância, 7,8% são realizadas em corridas de alta intensidade. Na primeira divisão do futebol brasileiro, os atletas percorrem 9,6 quilômetros por jogo, sendo que 7% das corridas são consideradas de alta intensidade. Parece pouco. Na prática, faz toda a diferença. Há que se considerar o calendário sufocante, a baixa qualidade dos gramados e a alta temperatura do país. Os números, contudo, não mentem: o futebol brasileiro é pouco intenso.

Em terra de cego…

Um reflexo do abismo entre o futebol brasileiro e o europeu é a quantidade de jogadores veteranos que perdem espaço nas principais ligas do mundo e retornam ao Brasil para brilhar. Em 2021, o atacante Hulk, de 35 anos, foi o protagonista da campanha que levou o Atlético Mineiro à conquista do Brasileirão. A equipe mineira não levantava o troféu desde 1971. Revelado nas categorias de base do Vitória (BA) no início dos anos 2000, Hulk fez sucesso com a camisa do Porto. “Paraíba”, como é conhecido, também jogou pelo Zenit, da Rússia, entre 2012 e 2016. Em razão da carreira consolidada na Europa, ganhou a chance de disputar a Copa do Mundo de 2014.

Já em fase descendente da carreira e sem mercado na Europa, o atacante passou pelo Shanghai Port Football Club, da China, pelo qual marcou 77 gols em 145 jogos. Em 2021, depois de rescindir o contrato com o clube chinês, acertou sua ida para o Galo. No último Campeonato Brasileiro, Hulk marcou 19 dos 67 gols do time — terminou como o artilheiro do torneio. Ele ainda deu seis assistências (passes que resultaram em gols), participando diretamente de 37% dos gols do Atlético Mineiro. Não à toa, foi eleito o melhor jogador da competição.

O camisa 7 do Galo não é o único veterano que, sem espaço na elite do futebol, voltou ao Brasil para ganhar alguns anos de carreira. Um exemplo clássico é o próprio Ronaldo, contratado pelo Corinthians no final de 2008. Com alguns quilos acima do peso ideal para um atleta profissional, o Fenômeno foi o grande destaque corintiano na conquista dos títulos do Campeonato Paulista e da Copa do Brasil de 2009. Adriano Imperador, no Flamengo, e Ronaldinho Gaúcho, no Atlético Mineiro, estendem a lista de jogadores que, embora desvalorizados na Europa, destacaram-se no futebol brasileiro.

A necessidade de reformas

“Não é surpresa que estejamos nessa situação”, afirmou Unzelte, ao analisar a decadência do futebol sul-americano. “É uma deterioração que vem de longe. Vimos isso acontecer antes, com o futebol uruguaio e argentino. O campeonato local é um espaço para jovens. Porém, quando o jovem é muito bom, nem fica no país — logo é vendido. O que sobra para nós? Os veteranos em fim de carreira.”

Agarrados ao título de pentacampeão mundial, os principais protagonistas do futebol brasileiro — cartolas, jogadores, treinadores e jornalistas — impedem o desenvolvimento do esporte no país. No debate público, as discussões sobre o tema circundam as quatro linhas, os dribles, os passes, os gols. Não se referem, no entanto, à desorganização estrutural do futebol brasileiro, à necessidade de reformas na CBF, nas federações e nos clubes. Sem o mapeamento claro dos problemas existentes, as soluções serão incertas. E o futebol brasileiro continuará bem longe de reconquistar o título de melhor do mundo.

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Revista Oeste