É bastante emblemática, embora pouco conhecida, a batalha do australiano Barry Marshall para tentar provar, na década de 1980, contrariando o consenso dos seus pares, que úlceras gástricas podiam ser causadas por uma bactéria, em vez dos fatores psicossomáticos aos quais eram, até então, unanimemente atribuídas. A rejeição da comunidade científica foi absoluta: como poderia qualquer bactéria sobreviver num ambiente ácido como o estômago? Objeto de escárnio e de uma campanha de difamação, Marshall não viu outra saída a não ser contaminar-se, voluntariamente, para provar sua tese. O que sugere que, apesar da natureza intrinsecamente investigativa e avessa a dogmas da ciência, como já ensinava Galileu Galilei há mais de três séculos, os donos do saber de quaisquer disciplinas, e em quaisquer tempos, não gostam de ver suas certezas contrariadas.
Graças à persistência de Marshall, que acabou sendo reconhecido com um Prêmio Nobel ao lado do colega de pesquisas J. Robin Warren, milhões de pessoas hoje se beneficiam dos tratamentos surgidos a partir da descoberta da Helicobacter Pylori. De lá para cá, porém, continuam a multiplicar-se exemplos de o quanto pode ser desafiante, mesmo para cientistas de renome, questionar posicionamentos consolidados. Como testemunha a minoria deles que ousa levantar ressalvas ao relatório do Intergovernamental Panel on Climate Change, o IPCC da ONU, sobre o aquecimento global e o peso relativo da atividade humana neste contexto. Embora inclua sumidades como os físicos Freeman Dyson, recentemente falecido, e Ivar Giaver, celebrado com um Nobel, este grupo não é apenas ignorado, mas quase sempre desqualificado por seus críticos.
Manifestações agressivas
Agora, a pandemia da covid-19 nos oferece outro caso explícito de ditadura do pensamento único. É certo que leigos não dispõem de embasamento técnico para tomar partido entre os que defendem a quarentena absoluta e a suspensão das atividades produtivas por tempo indeterminado, independentemente dos custos humanos e sociais decorrentes, seguindo a fórmula da China, e aqueles que advogam abordagens diferentes, como as adotadas em países como Japão e Coréia do Sul. Ou ainda modalidades de abordagem cirúrgica ou lockdown vertical adaptadas a realidades de cada país.
Parece mais do que razoável, entretanto, defender que, frente a um assunto de tamanha complexidade e impacto, todos possam ter acesso ao mais amplo leque possível de informações e pontos de vista de fontes qualificadas.
Em parte pelo efeito de ressonância das mídias, que repetem de forma exaustiva e redundante informações das mesmas fontes, em parte pelo chamado “viés de confirmação” — a tendência das pessoas de privilegiar dados que reforcem suas próprias opiniões —, vimos construir-se rapidamente, em escala internacional, narrativas homogêneas e verdades absolutas sobre a pandemia. Além de manifestações agressivas para desacreditar qualquer um que defenda o direito à reflexão e ao contraditório.
Uma guerra política sem quartel
No Brasil, onde a covid-19 pegou em meio a uma guerra política e ideológica sem quartel, a busca da verdade ficou ainda mais problemática. Tudo o que se divulga parece editado de forma enviesada para servir a um ou outro interesse partidário. O problema é que a História já deu provas mais do que suficientes de que este tipo de supressão de vozes divergentes leva quase sempre a decisões equivocadas.
A própria gestão da epidemia na China talvez seja o exemplo mais recente. Pois enquanto a Organização Mundial da Saúde, OMS, e parte da imprensa aplaudem os métodos pelos quais o regime comunista teria contido, depois de dois meses, a propagação do vírus, não se permite discutir qualquer eventual responsabilidade do governo do país na epidemia. Como se afirmar a procedência chinesa do vírus constituísse preconceito racista. E apesar de documentos do próprio Partido Comunista Chinês atestarem que as providências de contenção só foram tomadas tardiamente, depois que a política de prender ou dar sumiço aos que tentaram alertar sobre o surto mostrou-se insuficiente para contê-lo. Caso do médico Li Wenling e do repórter-cidadão Chen Qiushi, entre outros.A
Porque, apesar de ser impossível saber, de forma confiável, o que de fato acontece no país, já que o regime totalitário de partido único controla a informação e persegue opositores, temos a referência fartamente documentada das trágicas consequências de outro caso escandaloso de supressão da discórdia comandado pelo regime. Aquele ocorrido entre 1958 e 1962, quando Mao Tse Tung, o implacável ditador da época e fundador do PCC, arquitetou um delirante programa de aceleração do desenvolvimento, o chamado Grande Salto Adiante, para tentar sobrepujar as potências ocidentais e comprovar a superioridade do comunismo.
Resultados catastróficos
Parte do plano impunha metas extremamente ambiciosas de produção agrícola, a fim de liberar excedentes para a exportação, mas o resultado foi catastrófico. Como os agentes do partido na zona rural temiam alertar a cúpula em Pequim sobre a inexequibilidade do cumprimento das metas, acabou faltando grãos para alimentar a população. Calamidade que ficou conhecida como A Grande Fome e matou entre 30 e 45 milhões de pessoas, incluindo os assassinados por se recusarem a calar a boca diante dos erros do partido.
Assim, talvez seja recomendável manter a mente aberta e o direito à livre manifestação do pensamento face a um cataclisma da magnitude do que enfrentamos. Pode ser que a fórmula adotada pela ditadura chinesa, validada pela OMS e por inúmeros cientistas, seja definitivamente, sem a menor sombra de dúvida, a melhor. Mas também pode ser que não.
Afinal, vale lembrar que em janeiro, quando a epidemia já grassava na China havia pelo menos um mês, a OMS afirmou que investigações preliminares das autoridades do país não haviam encontrado evidências de contágio entre humanos. Também recomendou manter fronteiras abertas, já que “proibições de viagens interfeririam desnecessariamente no fluxo de pessoas e no comércio internacional e teriam o efeito de aumentar o medo e o preconceito, com benefícios mínimos à saúde pública”. A OMS também se recusou a declarar que se tratava de uma pandemia até o dia 11 de março, quando esta condição já era flagrante para qualquer pessoa minimamente informada.
O que traz à mente uma frase de Galileu, já citado no início deste artigo: “Em questões de ciência, a autoridade de milhares de estudiosos não vale, necessariamente, tanto quanto o humilde raciocínio de um único deles”.
Revista Oeste