Sim, é possível retomar a atividade econômica durante a pandemia de coronavírus. Não é fácil. Não é simples. Mas, com planejamento, tecnologia, dinheiro e determinação política, é realista a perspectiva do retorno da produção em poucas semanas. Esta é uma das pautas mais relevantes do momento em todo o mundo. Se a crise financeira de 2008 foi uma espécie de ataque cardíaco fulminante, a atual é um colapso sistêmico — este é o consenso que se forma entre corporações e governos. Ou seja: haverá muito sofrimento, mas o mundo não vai desabar. Nos países emergentes, onde o baque tenderá a ser maior, a previsão é de que PIB e bolsas de valores retornem aos níveis do início de 2020 em dois anos.
No Brasil, compreensivelmente, o presidente Jair Bolsonaro demonstra preocupação com os impactos das medidas de isolamento social na economia. É uma questão legítima, embora tenha sido tratada num discurso com sérios problemas de comunicação. Este é o momento de avaliar caminhos, estudar a pertinência da adoção no país de algumas das experiências bem-sucedidas lá fora e permitir que os ministérios da Saúde e da Economia atuem de forma coordenada.
A Coréia do Sul já voltou a produzir. Taiwan é um exemplo de manutenção da atividade econômica durante a pandemia. A Suécia testa modelos menos restritivos de isolamento social, ao, por exemplo, permitir a reabertura de restaurantes, desde que observadas certas regras. Mesmo a China, epicentro da peste, retomou vigorosamente a atividade fabril. Há, portanto, exemplos que merecem atenção. Nem todos, por óbvio, são aplicáveis ao Brasil. Por falta de recursos, deficiência de tecnologia, burocracia, ou ainda — e, talvez, sobretudo — porque o país não investiu em infra-estrutura, educação, pesquisa científica e saúde nos anos em que os emergentes estavam enchendo os cofres em razão da alta demanda chinesa por commodities; a escolha foi por criar estatais inúteis, aumentar o contingente de funcionários públicos e construir estádios para a Copa do Mundo de 2018. De todo modo, observar lições de outros países pode ser útil para o Brasil criar sua própria estratégia.
Planejamento
A Coréia do Sul enfrentou em 2015 uma epidemia de MERS, a Síndrome Respiratória do Oriente Médio, doença causada por uma variação genética do coronavírus. Trinta e oito pessoas morreram. Com o aprendizado, o país estabeleceu protocolos para a atuação rápida em situações semelhantes. Planejamento preventivo foi o comando. A Coréia não aumentou o número de servidores nem criou uma estatal nova para cuidar de doenças infecto-contagiosas. Preferiu investir em equipamentos e estrutura. Apenas para efeitos de comparação, o país tem 8% da sua força de trabalho ativa em carreiras públicas, ante 12% no Brasil e 17% na Itália.
O governo coreano liberou recursos para a ampla realização de testes, feitos sob rigoroso esquema de segurança, de modo a não expor profissionais de saúde a riscos de contágio.
A liberação de testes já em fevereiro permitiu a identificação rápida de áreas onde a doença estava ocorrendo com mais frequência, o isolamento de bairros críticos, bem como a desinfecção dessas regiões.
Com ações como essas, o governo não precisou pedir que as empresas fechassem. Elas se reestruturaram rapidamente. Implementaram o home office e reduziram lentamente a produção, mas sem paralisar por completo. No setor de serviços, os restaurantes continuaram abertos, com os clientes acomodados a uma distância segura dos outros. E, talvez a mais alegre das notícias, as escolas deverão voltar a funcionar no dia 6 de abril.
Tecnologia
Com o uso de ferramentas simples de tecnologia, é possível rastrear o percurso feito por um indivíduo infectado. Seu extrato do cartão de crédito indica em que lojas, supermercados e farmácias ele fez compras. O Waze informa por onde locomoveu-se na cidade. Com o uso de dados, o governo coreano refaz o trajeto das pessoas que contraíram o vírus para desinfectar aquela rota e os estabelecimentos em que o cidadão esteve. É complexo e exige, sem dúvida, muitos recursos. Mas o cruzamento de dados pode permitir que São Paulo, por exemplo, identifique bairros, ruas e estações de metrô com elevado índice de contágio, de modo a estabelecer medidas mais restritivas de isolamento social precisamente nessas áreas.
Dinheiro
O modelo coreano tem inspirado importantes líderes globais. Boris Johnson, do Reino Unido, e Emmanuel Macron, da França, solicitaram audiência com o presidente Moon Jae-in. O presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, também tem a Coréia do Sul como referência. Trump adotou a estratégia de investir na distribuição de testes rápidos que facilitassem a identificação e o rastro de pacientes com sintomas do coronavírus. Nos últimos oito dias, mais de 300 mil kits de testes foram espalhados pelos Estados Unidos. Ainda assim, é um número pequeno para um país com mais de 300 milhões de habitantes e proporções continentais — e a situação do sistema de saúde local não melhora muito com a deficiência de instrumentos básicos para enfrentar uma crise sanitária desse porte, como máscaras, coletes, aventais, cotonetes e outros itens de laboratório.
Para Trudy Rubin, do The Philadelphia Inquirer, essa falha sistêmica ocorre porque Trump hesita em usar a lei da Produção de Defesa, que mobilizaria as empresas americanas para produzir o que é necessário em situações emergenciais. Os políticos democratas argumentam que o melhor é insistir nos testes em grande escala e, dessa maneira, coletar informações necessárias para pedir aos não-infectados que voltem a trabalhar. Trump prefere uma abordagem mais flexível, monitorando criteriosamente os efeitos do relaxamento das medidas de reclusão domiciliar, sem insistir nos testes, até que a produtividade do país comece a se recuperar a partir da época da Páscoa.
Alguns especulam se o presidente dos Estados Unidos faz isso porque está imensamente preocupado com uma queda financeira com potencial de afetar o resultado das eleições deste ano. Outros analistas supõem que Trump estaria usando uma estratégia próxima à de um outro presidente americano, Calvin Coolidge. Em 1928, Coolidge, mesmo sabendo de antemão da inevitável crise na bolsa americana que ocorreria um ano depois, achou melhor deixar a economia tomar seu próprio curso e não praticar qualquer intervenção governamental no mercado.
Pelo contrário: no início de março, chamou os CEOs das maiores empresas de serviço dos Estados Unidos — como Costco e Walmart, Amazon e UPS — para pedir ajuda na recuperação econômica do país em meio à pandemia. Como? No relato de Tyler Cowen, publicado no site da Bloomberg, justamente ajudando pequenas e médias empresas na infraestrutura básica para que continuem operantes — medida que a Itália, uma das maiores vítimas do vírus na Europa, não conseguiu praticar, deixando estabelecimentos de pequena escala, como quiosques, bares e sorveterias à míngua ou à beira da falência. No receituário americano de preservação dos negócios, é necessário não apenas dinheiro público, mas também privado.
Determinação política
No Reino Unido, o governo conservador do primeiro-ministro Boris Johnson, ele próprio vítima da covid-19, testou a manobra da “imunidade de rebanho” mas recuou rapidamente. A herd immunity é a tese de que a epidemia pararia se as pessoas ficassem expostas à covid-19, desenvolvendo os sintomas da doença. Assim, ganhariam imunidade. Uma vez que um grupo de jovens ficasse imune, logo um outro grupo da população — entre eles, os velhos e os que estão no estágio de risco — estaria protegido. Cientistas e médicos alertam o governo que muitos jovens desenvolveriam sintomas sérios da doença e teriam de ser internados. Além disso, os infectados poderiam contaminar grupos de velhos — o que acarretaria uma sobrecarga no sistema de saúde. A “imunidade de rebanho” acabou atrasando a mitigação da pandemia.
A medida rapidamente implementada na sequência foi proposta pelo conselho do Grupo Consultivo Científico para Emergências — Sage, na sigla em inglês. “Uma política de alternância entre períodos de medidas de distanciamento social mais e menos rigorosas pode ser plausivelmente eficaz para manter o número de casos de cuidados intensivos dentro da capacidade”, recomendou o Sage, conforme documento obtido pelo Financial Times. Nos períodos de “relaxamento”, o sistema de saúde reforça o monitoramento da evolução do contágio para estabelecer o próximo período de maior rigor. Tudo isso, permitindo o retorno da atividade econômica gradualmente.
Há lições também nos erros. É necessário determinação política para reconhecer equívocos e corrigir a estratégia o quanto antes.
Vitalidade econômica
Não será rápida a recuperação. Mas há notícias alvissareiras. A BMW informou esta semana que a produção de suas fábricas instaladas na China foi reiniciada na segunda semana de fevereiro. Outra gigante do setor também se recupera, a Fiat Chrysler. Além disso, o comércio chinês registra crescimento na venda de aparelhos eletrônicos em várias lojas do país e houve um aumento súbito no tráfego do metrô, com índices de mais de 20%.
A Coréia do Sul, embora seja o grande modelo global de controle da pandemia — comparável apenas a Taiwan —, é um mercado emergente e sofre imensa pressão monetária. Foi dramática a fuga de fundos estrangeiros, um dos motivos de instabilidade na região: US$ 58 bilhões sumiram de lá, o dobro da quantia que deixou o território na crise de 2008 ou na de 2013. O impacto dessa retirada pode ser sentido na ausência de investimentos das empresas coreanas nos países latino-americanos, como Brasil e México, que, com suas infraestruturas e finanças frágeis, sentirão um baque maior do que o previsto.
O presidente coreano Moon Jae-in disse ter plena noção de que a economia do seu país terá um crescimento negativo nos primeiros quatro meses deste ano. Jae-in enfatizou os esforços do seu governo para aquecer um mercado baseado em exportações, junto com o relaxamento da política fiscal.
O plano contempla a preservação de atividades essenciais, recursos para reerguer pequenos e médios negócios, apoio a profissionais autônomos e ao setor de serviços. O pacote, segundo o presidente, permitirá que a economia coreana recupere vitalidade e — o mais importante — impedirá que permaneça num curso descendente em relação a outros mercados globais.
O plano de guerra
Esta é a preocupação que está na origem dos questionamentos do presidente Jair Bolsonaro em relação às medidas de confinamento domiciliar. Após a decretação do estado de calamidade pública, o presidente adotou várias ações para atenuar os danos econômicos relacionados à covid-19. Palácio do Planalto, Ministério da Economia, ala militar e principais aliados apostam exatamente nessas medidas para conter uma incipiente, embora perigosa, onda de insatisfação popular. O debate no governo agora é como combinar preservação de vidas e o retorno da atividade econômica.
Até o momento, os recursos já disponíveis por meio de medidas provisórias somam R$ 8 bilhões. Esse dinheiro será investido na melhoria da estrutura de hospitais em todo o país, no socorro a estados que enfrentam dificuldades fiscais, no aumento do Bolsa Família — com a inclusão de pelo menos 1,5 milhão de pessoas — e no reforço do Fundo Nacional da Saúde e da Fundação Oswaldo Cruz.
Mas tem mais dinheiro a caminho. O governo federal estima que a conta total será de algo em torno de R$ 750 bilhões. Deste valor, cerca de R$ 156 bilhões serão usados para socorrer empresas, de modo que possam pagar o salário de empregados em quarentena. Outros R$ 88,2 bilhões vão para investimentos diretos em saúde nos estados e municípios. O mega pacote leva em consideração ainda outras medidas, como a suspensão do pagamento de impostos federais por três meses, garantia do vale-transporte para os trabalhadores, subsídio para quem atrasar o pagamento das contas de água, luz e gás.
No curto prazo, o Poder Executivo trata como prioridades a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 438/2018 e o Projeto de Lei Complementar (PLP) 149/2019 — também chamado de “Plano Mansueto”, numa referência a seu formulador, o economista Mansueto Almeida, secretário do Tesouro Nacional. Juntos, o PLP e a PEC são quase um plano de guerra. Propõem socorro a estados e municípios endividados, liberação de empréstimos com aval da União, com o devido impedimento de que esses recursos sejam utilizados na contratação de burocratas.
Para colocar o plano de guerra em prática, o líder do governo na Câmara, Vitor Hugo (PSL-GO), praticamente montou um bunker na pequena sala de 50 metros quadrados da liderança governista. Ele vai à Câmara todos os dias, mantém interlocução direta com os ministérios mais estratégicos e deixa uma equipe em esquema de plantão. Duas ou três pessoas ficam ao mesmo tempo no gabinete, enquanto o resto da equipe trabalha em home office. As que ficam na sala, respeitam as regras de distanciamento recomendadas pelo Ministério da Saúde. Hugo apoia a ideia de Bolsonaro do retorno das atividades produtivas. “Embora tenha a forma muito própria de falar, o presidente quer buscar um equilíbrio entre as medidas sanitárias, que são importantes e têm que ser adotadas, e a economia, para que o país não enfrente repercussões econômicas mais dramáticas do que o próprio vírus”, sustenta.
Até mesmo integrantes do Centrão passaram a admitir a necessidade de que o país tenha como meta de curto prazo a retomada da normalidade econômica. A demissão de aproximadamente três mil trabalhadores dos setores de bares e restaurantes em Brasília, assim como a dispensa de funcionários de empresas do setor rodoviário, em especial a Viação Cometa e a 1001, acenderam o sinal de alerta. Inclusive o governador do Distrito Federal, Ibanes Rocha (MDB), que rompeu com o presidente Bolsonaro, passou a considerar a flexibilização das medidas de confinamento domiciliar. “Acredito que, nos próximos dias, haverá um novo comando de como será essa quarentena”, pondera o líder do DEM no Senado, Rodrigo Pacheco (MG). “Cabe ao governo federal estudar e adotar medidas que não desestabilizem a economia. Mas é preciso haver equilíbrio entre os setores.” Ao menos quanto a isso há consenso.
Wilson Lima e Rodolfo Costa, Revista Oeste