Em um recente artigo para o ‘The New York Times’ (intitulado “Is our fight against coronavirus worse than the disease?” – “É nossa luta contra o coronavírus pior do que a doença?”), o internacionalmente reconhecido Dr. David Katz, diretor do Yale-Griffin Prevention Research Center (o qual faz parte da Escola de Saúde Pública de Yale), ousou questionar um dogma que se instalou recentemente diante da pandemia do coronavírus: o dogma da necessidade do lockdown (bloqueio) quase total de toda atividade econômica.
Com efeito, ele inicia seu artigo distinguindo dois tipos de ação militar, a saber:
1. A inevitável carnificina e os efeitos colaterais das hostilidades.
2. A precisão de um “ataque cirúrgico”, o qual ocorre de forma metódica, visando combater especialmente as causas específicas do perigo.
Desnecessário dizer que o “ataque cirúrgico” minimiza os temíveis efeitos colaterais das ações realizadas. Ou seja, o mesmo fim é alcançado sem os danos oriundos da “carnificina”.
Tal analogia importa, pois estamos, também, em uma batalha. Nesse caso, o inimigo é um vírus. E também nesse caso podemos ter ou uma batalha violenta, com terríveis efeitos colaterais, ou podemos ter uma abordagem mais “cirúrgica”. O Brasil (especialmente municípios e estados), como temos acompanhado, tem usado da primeira alternativa.
Estamos sob um lockdown quase absoluto, o que tem, como efeito colateral, causado a suspensão de nossas atividades econômicas, o que trará (já está trazendo, em verdade) consequências lesivas ainda piores do que os danos causados pelo coronavírus.
Inicialmente, Katz esclarece didaticamente alguns pontos: O outbreak do coronavírus se dá mediante um vetor em especial, a secreção (tosses, por exemplo). E trata-se de uma pandemia porque a população “é vulnerável – isto é, não imune – a um dado patógeno capaz de eficientemente se espraiar” (a transmissibilidade do coronavírus é muito maior que sua letalidade).
Além disso, “a imunidade ocorre quando nosso sistema imunológico desenvolveu anticorpos contra um germe, seja naturalmente seja como resultado de uma vacina”. “A resposta do sistema imunológico é tão robusta que o germe invasor é erradicado antes que os sintomas da doença possam se desenvolver”.
Outro ponto importante destacado por Katz é o seguinte: “A robusta resposta imune também previne a transmissão”. Mais importante ainda é, então, a seguinte conclusão: “Se um germe não pode assegurar sua permanência em teu corpo, teu corpo já não serve como vetor para enviá-lo para um próximo hospedeiro em potencial. Isso é verdade mesmo que a próxima pessoa não seja imune”.
Noutros termos, se nos tornamos “dead ends” para transmissões virais, a transmissão tende a fenecer e, eventualmente, acabar. Isso é a “imunidade de rebanho” (herd immunity).
Em seu artigo, o Dr. Katz cita o exemplo da Coreia do Sul, uma vez que, segundo ele, ela oferece os melhores dados para acompanharmos o coronavírus.
Segundo ele, esses dados nos mostram que 99% dos casos ativos na população em geral são “brandos”, não demandando tratamentos médicos específicos.
A pequeníssima percentagem de casos que exigem cuidados e tratamento se concentra na comunidade idosa, acima dos 60 anos. E quanto mais idoso, maior o risco de óbito.
Tais dados são, segundo ele, corroborados pelos dados de Wuhan (China), na qual a distribuição de óbitos segue a mesma proporção, embora com maior número de mortes.
Tais números elevados se explicariam, segundo Katz, pelo fato de na China ter havido menos testes, diferentemente do que ocorreu na Coreia do Sul.
Na verdade, a Coreia do Sul rapidamente começou a fazer testes em toda a população, mesmo em sujeitos saudáveis. Isso lhes permitiu identificar os casos brandos e assintomáticos.
Até o momento em que escrevo esse texto tivemos, no Brasil, 92 mortes, sendo que, a exemplo do que tem ocorrido em outros países, a maioria é formada por idosos, muitos com doenças crônicas (diabetes, problemas cardíacos, por exemplo), o que nos leva a perguntar: Todos os indivíduos faleceram em virtude do coronavírus (que seria, nesse caso, causa do óbito) ou apenas estavam com o coronavírus, sendo sua morte causada por condições pré-existentes?
Sobre o grupo de risco, aliás, como observou o Dr. Katz, o coronavírus difere significativamente, por exemplo, do influenza, o qual ataca idosos, aqueles com doenças crônicas e também crianças.
Conforme o Dr. Katz, o fato de o coronavírus ser fatal particularmente para idosos (sendo quase totalmente inócuo para crianças) sugere que deveríamos adotar uma abordagem diferente daquela que vem sendo colocada em prática pelos nossos governos (especialmente municipais e estaduais).
E que abordagem seria essa?
Dr. Katz responde: “Preferencialmente protegendo da exposição os clinicamente frágeis e aqueles acima dos 60 anos, em particular aqueles acima dos 70 e 80”.
Tal medida seria fundamental tendo-se em vista sobretudo o futuro. Nesse momento estamos com instituições de ensino fechadas, comércio interditado por diversos decretos ... a vida econômica do Brasil está literalmente em uma espécie de coma. O que ocorrerá em seguida? Nesse momento já são contabilizados centenas de milhares de desempregados. Diversos empresários anunciam que irão à falência. Um recente gráfico da J.P Morgan mostra quantos dias uma pequena empresa nos USA pode sem manter sem faturamento: 27 dias.
E quanto ao Brasil? Sobreviverá sem faturamento uma pequena empresa brasileira pelo tempo dos decretos que as impedem de voltar à ativa?
Ainda não podemos imaginar o desastre humanitário que representará esse quase total lockdown da atividade econômica, mas sabemos que “desemprego, empobrecimento e desespero” já se fazem perceber. E a cada dia de lockdown maior a crise.
No momento ela não é sentida por alguns, como pelo funcionalismo público que segue recebendo seus proventos e tendo supermercados abertos à sua disposição. Mas e quando a crise chegar também no funcionalismo público, com atrasos e reduções de salário? Certamente mudarão de opinião e defenderão, juntamente com nosso presidente, que “o Brasil não pode parar”.
Com efeito, o que está ocorrendo no Brasil é aquilo que o Dr. Katz chama de “interdição horizontal”, a qual ocorre “quando políticas de contenção são aplicadas a toda população sem considerar seu risco de infecção severa”.
Estamos, pois, sob uma “interdição horizontal”. Isso porque nossos governos (especialmente municipais e estaduais) deliberaram por parar quase toda a força de trabalho, bem como por fechar as instituições de ensino. E isso ao invés de proteger especialmente os mais vulneráveis, causará um colapso econômico com proporções que ainda não podemos dimensionar.
E aqui há uma questão importante: quando será seguro sairmos do isolamento? Quando será seguro mantermos contato próximo com grupos de risco?
Quando a vacina estiver disponível?
Ora, segundo mostra a história uma vacina só se torna disponível após a pandemia ter passado.
Agora, fala-se em 18 meses para que uma vacina contra o coronavírus esteja acessível. Portanto, não parece razoável ficarmos isolados até termos uma vacina.
A verdade é que, nesse momento, não sabemos quando poderemos sair do isolamento. O confinamento foi decretado sem o estabelecimento de critérios para seu fim. Assim, muitos se perguntam: Ainda ficaremos confinados por semanas, por meses?
Qual seria a saída dessa situação obscura, incerta?
Segundo o Dr. Katz, “poderíamos focar nossos recursos em testes e na proteção, em cada maneira possível, de todas as pessoas que os dados indicam que são especialmente vulneráveis à infecção severa: os idosos, as pessoas com doenças crônicas e os imunologicamente comprometidos” (...), pois “se focássemos especialmente nos vulneráveis, haveria recursos para mantê-los em casa, para lhes prover os serviços necessários e o teste para o coronavírus, bem como para direcionar nosso sistema médico para seu rápido cuidado”. No entanto, no atual estado de coisas, em que vige a “intervenção horizontal” (bem como uma histeria promovida em grande medida pela mídia), não são possíveis tais medidas.
Primeiramente, porque nosso sistema está sobrecarregado por aqueles que não fazem parte do grupo de risco, os quais recorrem a um limitado sistema de saúde (observem que são milhares de casos descartados para uns pouquíssimos confirmados), causando uma sobrecarga no sistema, tornando-o menos eficiente para tratar daqueles que realmente carecem dele. Sem falar que os profissionais da saúde também estão sofrendo com o lockdown, bem como possuem demandas de sua vida pessoal e familiar. Por quanto tempo eles irão suportar a sobrecarga?
Assim, Dr. Katz sugere, nesse atual contexto de pandemia, uma “interdição vertical”, ou seja, o foco em uma pequena parcela da população, nomeadamente naquela mais propensa a infecções graves. Isso permitiria à sociedade uma reabertura de sua vida comercial, assegurando o retorno das atividades econômicas e uma redução nos inevitáveis danos que o lockdown irá causar em nossa economia e na vida das pessoas. “Crianças saudáveis poderiam retornar à escola e adultos saudáveis voltariam aos seus empregos. Cinemas e restaurantes poderia reabrir, embora possamos ser sábios e evitar reuniões sociais muito amplas, como eventos em estádios de esportes e concertos”. Aqui importaria evitar o colapso de nossa economia, uma vez que sua falência afetará terrivelmente a todos, especialmente os menos aquinhoados. Uma “intervenção vertical” seria, em suma, a mais adequada para a proteção dos realmente mais frágeis, seja dos mais frágeis de saúde seja dos mais frágeis economicamente.
Além disso, a sociedade desenvolverá “imunidade de rebanho” (de grupo): “Uma vez que a maior parte da população for exposta e, se infectada, se recuperar e ganhar imunidade natural, o risco para os mais vulneráveis cairá dramaticamente”. Ao encerrar seu artigo Dr. Katz nos diz que: “A cada dia que passa, todavia, isso se torna mais difícil. O caminho em que estamos pode levar a um incontrolável contágio viral com um monumental dano colateral para nossa sociedade e economia. Uma abordagem mais cirúrgica é do que precisamos”.
Por tudo isso, talvez seja necessário que sopesemos as implicações do lockdown sobre a economia diante dessa pandemia que assola o mundo. Isso por uma razão fundamental: salvar vidas envolve muito mais do que o simples isolamento. Para que tenhamos uma ideia da tragédia humanitária que está por vir, tomemos os dados recentemente sugeridos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual estima que possamos chegar a entre 5 ou 25 milhões de desempregados, dependendo do cenário futuro (de qualquer forma, serão milhões de desempregados).
Demissões e falências corporativas já aparecem no horizonte (enquanto escrevo esse texto acompanho diversas notícias sobre demissões em grande escala). Certamente cuidar daqueles que precisam imediatamente de atenção importa. Mas precisamos pensar prospectivamente. Nem o Estado terá condições de arcar com toda a conta (afinal, o Estado distribui recursos os tomando dos pagadores de impostos, os quais não terão muito com o que contribuir – dinheiro não surge por geração espontânea, de tal forma que, se a atividade econômica mirrar, o Estado não terá de onde extorquir recursos) nem os empresários poderão custear suas folhas de pagamento, aluguéis, etc. Nesse momento muitos já não o podem.
Por essa razão, recentemente estados como Mato Grosso, Rondônia e Santa Catarina consideraram sair do isolamento, mantendo, é claro, os cuidados. Nos USA o estado de Nova York sai à frente e segue nessa mesma direção, sendo que países como Holanda e Suécia, por exemplo, recentemente anunciaram que consideravam não adotar o confinamento. Trata-se de uma decisão difícil? Certamente. Não há escolha simples nessa situação (assim como não há decisão fácil na guerra).
Haverá muitos óbitos, seja qual for a escolha feita. Parece-me que o que se está deixando de lado da equação são os milhões de sujeitos que sofrerão os danos colaterais da medida vigente de isolamento. E eu nem me refiro apenas aos afetados economicamente. Por exemplo, a queda de doações de sangue em hemocentros já ultrapassa os 50% desde que o isolamento foi determinado. Muitas serão as “mortes invisíveis”, ocasionadas pelas decisões que foram tomadas para garantir o isolamento. Muitas delas ainda ocorrerão e não serão computadas. Muitos pacientes nesse momento tiveram suas consultas e exames suspensos. Que ocorrerá com aqueles casos que necessitariam de intervenção imediata?
Além disso cabe, ainda, inquirir os dados. Por exemplo, um estudo recente da universidade de Oxford questionou o número de mortos pelo coronavírus na Itália, sugerindo que apenas 12% dos números divulgados seriam casos de óbito por coronavírus (os demais seriam causados por problemas pré-existentes, sendo que algumas pessoas morrem com o coronavírus, não por causa dele). Aqui no Brasil, pelo momento em São Paulo, os profissionais do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) deverão atestar mortes por coronavírus, o que poderá levar ou a uma subnotificação dos casos ou, o mais provável, a uma supernotificação. Pessoas com sintomas semelhantes aos do coronavírus poderão ser declaradas mortas por conta do coronavírus. O ponto é que não teremos certeza quanto aos números. Ficaremos à mercê da discricionariedade dos profissionais da saúde, os quais estão trabalhando incansavelmente e sob intensa pressão.
Portanto, como tomar medidas radicais como o lockdown se sequer estamos devidamente informados?
Nessa semana um dos mais importantes infectologistas do Brasil, Esper Kallás, declarou em entrevista ser contra o confinamento de indivíduos que não manifestam os sintomas do coronavírus. Sua entrevista parece estar em acordo com a posição do Dr. Katz. E vejam: estamos aqui citando profissionais altamente reconhecidos e qualificados, os quais têm questionado, com bons argumentos, a “intervenção horizontal”.
No entanto, a pandemia do coronavírus transcendeu a questão da saúde e se tornou um aríete político, um aríete usado para derrubar o governo federal. Políticos, professores, juristas, gestores universitários, et al, usam obstinadamente da pandemia para, das formas mais abjetas, vilipendiar o governo federal, especialmente representado pelo presidente Bolsonaro. O coronavírus, e o sofrimento por ele causado, é usado diuturnamente para se desestabilizar e, como dizem desde a esquerda, “destruir o governo Bolsonaro”. Portanto, estamos não apenas em guerra contra o coronavírus: estamos em guerra contra aqueles que querem o caos.
Mas, finalizando, o ponto é que há bons argumentos para pensarmos em adotar, como sugerido pelo presidente Bolsonaro, uma “intervenção vertical”. Tal intervenção protegeria não apenas uma minoria atualmente mais frágil (idosos, portadores de doenças crônicas, etc), mas sobretudo aquela maioria que estará fragilizada, faminta e desesperada após o fim dessa pandemia.
(Texto de Carlos Adriano Ferraz. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio doutoral na State University of New York (SUNY). Foi Professor Visitante na Universidade Harvard (2010). Atualmente é professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Filosofia, no qual orienta dissertações e teses com foco em ética, filosofia política e filosofia do direito)
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