A Inglaterra parece que vai implodir, devorada por um debate sem saída aparente, mas ter uma história longa e agitada ajuda a manter a perspectiva
O que é pior: um Brexit puro e duro, um Brexit cheio de concessões ou Brexit nenhum? Nem se Jon Snow aparecesse montado num dragão para salvar a pátria haveria uma resposta fácil.
Mas só o fato de que a pergunta tenha começado com “pior” em vez de “melhor” já dá uma ideia de como o debate sobre o dia B criou um clima de Guerra dos Tronos na Inglaterra – o centro do poder e das brigas do Reino Unido.
A disputa fica mais interessante porque está sendo travada dentro do Partido Conservador, que só governa através de uma fragilíssima aliança.
A ala majoritária nunca imaginaria o resultado do referendo popular pela saída da União Europeia – e trama um jeito de não sair. Muitos já deixaram de dar punhaladas pelas costas e estão atacando pela frente mesmo, um ato que políticos em geral só praticam quando vêem sangue na água. Dos adversários ou deles próprios.
Uma ala minoritária, mas amparada pelo voto popular, não engole de jeito nenhum as concessões feitas para conseguir uma saída negociada – e manobra para conseguir derrubar o Brexit desdentado sem levar o governo conservador junto. Os líderes de vários subgrupos, obviamente, sonham com um golpe de sorte que os leve ao poder.
Humilhada, ridicularizada, desprezada e abominada por praticamente todos os acima mencionados, sem contar a oposição que só espera o momento certo para dar o bote, Theresa May tenta, contra todas as expectativas, empurrar o seu projeto na base do ou isso ou o Juízo Final.
Para ela, a hora do julgamento pode ser hoje mesmo. Uma derrota em que mais de 100 parlamentares conservadores votem contra seu acordo para o Brexit, mais toda a oposição trabalhista e partidos menores, daria 435 votos contra. May não tem um plano B. Aliás, pelas carências do projeto que apresentou, parece não ter nem plano A.
Todos os demais cidadãos comuns que votaram contra o Brexit pensam “Bem-feito” e esperam a autorrealização das profecias apocalípticas: vai faltar comida, vai faltar remédio, o caos reinará nos portos e aeroportos, preços enlouquecerão, empregos desaparecerão, a City de Londres – o filé mignon do mercado financeiro mundial – afundará, a Irlanda do Norte se desprenderá, a Escócia idem e o que sobrar do reino desunido se transformará num país de quinta.
A única coisa boa, para essa turma, é que o Partido Conservador se fragmentará definitivamente.
GOLPES DE SABRE
Nenhuma das hipóteses acima, principalmente a última, pode ser descartada. Em especial o racha do “mais antigo e bem -sucedido partido da história britânica”, como os conservadores se orgulhavam em dizer, antes de começarem a trocar facadas em público.
Não que as facas sejam exatamente uma novidade. No século 19, para ficar num exemplo recente do ponto de vista deles, o partido se dilacerou por causa de uma discussão que envolvia protecionismo e livre-comércio.
As Leis dos Cereais (corn laws, no original) dividiram o reino e o Partido Tory, o nome pelo qual os conservadores são conhecidos até hoje, remetendo às suas origens, no século 17. Eram leis protecionistas que taxavam a importação de grãos, favorecendo os produtores internos, a classe proprietária de terras, aliados naturais dos tories. Um assunto sério, mas que aparentemente não produziria rebelião popular ao estilo dos coletes amarelos na França – e reprimida a golpes de sabre do regimento dos hussardos da cavalaria, num episódio que ficou conhecido como “massacre de Peterloo”, em Manchester.
Saldo: quarenta mortos e mais de 400 feridos.
Anote-se que o país estava endividado depois das guerras napoleônicas, com carestia generalizada, impostos altos e uma administração linha dura do duque de Wellington. Ter vencido Napoleão Bonaparte na Batalha de Waterloo, mudando a história da Europa, foi uma coisa; governar, outra bem diferente. E mal feita: o duque é considerado até hoje um dos piores primeiros-ministros da história britânica.
Um protegido dele, Robert Peel, em compensação, reformulou os tories, lançando as bases modernizadas do Partido Conservador. Defensor do livre-comércio, foi ele quem conseguiu derrubar as Leis dos Cereais, defendidas pela maioria dos tories.
Para isso, aliou-se com o partido de oposição, os whigs, mais associados à nascentes industrialização e aos bancos, e pagou o preço: foi derrubado pelos próprios conservadores, em 1846.
FASE CERSEI
O mesmo destino teve Margaret Thatcher, que desafogou a economia mais de um século depois, baseada nos princípios liberais, com um apelo popular do “capitalismo para todos” – um feito espetacular para um partido historicamente associado às classes dominantes.
Como nenhuma boa ação passa impune (um princípio da dramaturgia que se expandiu, sob o olhar dos céticos, para a vida em geral), Thatcher caiu pelas mãos dos conspiradores de seu partido que consideravam perniciosa sua oposição ao expansionismo da então Comunidade Econômica Europeia.
Também estava desgastada, a economia perdia o fôlego e ela havia entrado numa fase Cersei Lannister, a ambiciosa e desastrada rainha de Guerra dos Tronos. Não existem líderes vitalícios nas democracias e as forças históricas sempre se sobrepõem aos personagens.
As correntes em choque no Partido Conservador e na Inglaterra em geral por causa do Brexit refletem movimentos tectônicos na ordenação dos estados. O choque entre soberania nacional e o supranacionalismo ainda está se desdobrando.
“Não importa quem você seja ou quanto é forte, mais cedo ou mais tarde, enfrentará circunstâncias fora do seu controle”. Uma fala da rainha Cersei que vale para políticos de qualquer época. Completada por outra de Margaret Thatcher”: “Se você quer cortar a própria garganta, não venha me pedir um curativo”.
Se Theresa May cortar a própria garganta, acreditando com impressionante obstinação que só ela tinha a saída para o labirinto do Brexit, terá pouca gente para oferecer um curativo.
Se o Partido Conservador rachar ou perder um número significativo de parlamentares, será outra de uma longa sucessão de circunstâncias fora do controle.
Na origem, os tories nasceram para apoiar a monarquia contra as concessões exigidas do Parlamento ao rei – deu em guerra civil, regicídio e ditadura parlamentar, tão pavorosa que o regime monárquico foi restaurado.
Os impasses de sucessão deram tantas reviravoltas que os tories acabaram contra o rei buscado em Hanover, coroado em 1741 como George I. Uma ala dos tories chegou a se aliar com invasores franceses na tentativa de derrubar o rei alemão.
Perderam cargos públicos (e o direito de nomear filhos para eles), comissões no Exército, contratos com o governo e diretorias de empresas públicas. Penaram 45 anos nesse deserto.
Tem gente em Brasília que está se sentindo exatamente assim. Aqui ou lá, sabem que o rio da política vive mudando para continuar o mesmo.
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