Li há pouco em “Ecce homo”, uma espécie de resumo e autobiografia do filósofo: “Entre minhas obras, ocupa o meu ‘Zaratustra’ um lugar à parte. Com ele, fiz à humanidade o maior presente que até agora lhe foi feito”.
Esta presunção delirante da própria escrita — um sintoma talvez inerente a escritores e pensadores — convive com alto grau de percepção da realidade. Nietzsche diz que a “última coisa que prometeria seria ‘melhorar’ a humanidade (aspas dele). Eu não construo novos ídolos”.
Garante que derrubar ídolos — sua palavra para “ideais” — é seu ofício: “A realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua veracidade, na medida em que se forjou um mundo ideal”.
Em suma, a mentira do ideal tem sido a “maldição sobre a realidade”. Através dela, a humanidade se tornou “hipócrita e falsa até em seus instintos. A ponto de adorar os valores inversos aos únicos que lhe garantiriam o florescimento, o futuro, o elevado direito ao futuro”.
Nietzsche morreu louco, e a causa provável foi uma sífilis contraída em sua juventude. O desfecho de sua vida, e os delírios presunçosos, não invalidam o legado de reflexão e pensamento crítico que nos doou. Os invejosos da capacidade de pensar não encontrarão aqui munição para desqualificá-lo. Como fazem com tantos outros que os incomodam.
Cruzamos hoje com brasileiros zumbis. Eles fazem de conta que nada está acontecendo, tanto quanto outros embriagados de fanatismo, para quem tudo está por acontecer. Com algum esforço de negação da realidade, ou cinismo, há os que pretendem ignorar ou diminuir a incógnita que está à nossa frente. O fato de já termos estado diante de outras incertezas não nos garante que já sabemos onde as atuais nos levarão.
Pois, pela primeira vez em eleições presidenciais, os candidatos preferidos pelos brasileiros ou estão no hospital, vítima de cruel atentado, ou na cadeia, por chefiar perigosa quadrilha que ainda pretende governar o país em nome do povo oprimido até por mentiras que lhe são impingidas.
Além dos zumbis e fanáticos, há, entre os brasileiros, a maioria de impotentes que só transcendem seu estado juntando o voto a um candidato redentor — seja o criminoso, e seu cúmplice anunciado, ou o acamado, vítima de violência que ele próprio pretende violentamente combater, e que sequer sabe se ele próprio conseguirá sobreviver.
É o momento em que o indivíduo tem a esperança de mudar alguma coisa que anda muito mal. O penoso estado dos candidatos expressa isso —se já não fosse suficiente a grave polarização que representam.
Porque o indivíduo consciente, para além do zumbi e do fanático, se encontra hoje perplexo e impotente. Está diante do fato de que uma realidade extremamente adversa, complexa e inatingível lhe coloca uma demanda de solução individual para questões que lhe foram impostas e tramadas sem seu consentimento ou participação.
Entre os políticos, há uma certa presunção delirante do que é possível fazer diante da crise. Sou do tempo em que ainda se estudava “Psicologia das massas e análise do eu”, de Sigmund Freud. Embora Dawkins tenha dito que ideias possam ser equivalentes a genes, o fato de alguém ter escrito “Psicologia das massas e análise do eu” não é semelhante à descoberta da vacina, do antibiótico. A patologia foi revelada, mas as ideias críticas não curam sintomas e causas que continuam sendo produzidas. É o dilema de todo psicanalista em sua faina diária.
E os brasileiros estão de novo encenando o drama de “Psicologia das massas e análise do eu”: a regressão do indivíduo submerso na massa, a perda do raciocínio crítico, a união fraterna e subterrânea com os que idolatram o mesmo líder messiânico que anuncia esperança mágica comum a todos.
O Globo