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As primeiras manifestações no Irã foram na cidade de Mashhad e parece que o preço do ovo estava em questão. Ou, dependendo do ponto de vista, a cabeça de Hassan Rouhani, o presidente que tantos comentaristas ocidentais gostam de exaltar como democrático, bacana, moderado.
“Morte ao ditador” não costuma ser uma palavra de ordem em protestos contra aumentos de preços. Houve outras: “Fora da Síria, olhem para nós”, “Nem Gaza, nem Síria, só sacrifico minha vida pelo Irã”, “Abaixo a república islâmica”.
Até o xá, cuja queda propiciou a ascensão da teocracia dos aiatolás xiitas no turbulento ano de 1979, foi lembrado. E de maneira positiva. Nem o turbante-mór, Ali Sistani, escapou dos xingamentos, um pecado mortal, por assim dizer, para os mais crentes.
Em outra ofensa aos carolas, uma jovem de calça skinny e tênis moderninho amarrou num galho de árvore o pano que todas as iranianas são obrigadas a usar na cabeça. O lenço branco ficou balançando num movimento suave, sem raiva, num protesto quase doce.
Foi um momento comovente, entre outros muito mais tensos, com confrontos que fizeram mais de dez mortos, e um sinal de que são as camadas mais ocidentalizadas que saíram às ruas.
Não é impossível que muitos dos que protestavam, com palavras de ordem que eram punhaladas no coração do regime teocrático, tenham votado em Rouhani.
Em algumas esferas, especialmente as referentes à repressão mais dura às vestimentas femininas e outros aspectos comportamentais, ele realmente conseguiu alguma abertura.
Quando começou a onda atual de manifestações, Rouhani disse que era preciso ter “espaços” para protestos democráticos, não para o pessoal mais cabeça quente que estava tocando fogo em prédios do governo. Num episódio mais violento, um policial foi morto.
Ironicamente, ele deveria estar num momento de glória. Foi reeleito presidente em maio, o acordo nuclear normalizou o Irã em vários aspectos e o regime deveria estar colhendo a recompensa pela arriscadíssima aposta que fez na Síria.
Contra a ampla maioria das previsões, e com a ajuda da Rússia, que deu cobertura literal e virtual, o Irã conseguiu segurar no poder o regime de Bashar Assad.
Seu maior inimigo, o Estado Islâmico, formado por radicais sunitas que consideram os xiitas hereges sujeitos a execução sumária, está derrotado e disperso. Seus protegidos no Iraque e no Líbano, cujos governos dominam, cantam vitória.
Nos Estados Unidos e Europa, as virtudes imaginárias de Rouhani são exaltadas por comentaristas e políticos, uma maneira indireta de criticar Donald Trump por ter ousado denunciar o acordo nuclear assinado no governo anterior.
Num sinal importante dessas diferenças, enquanto líderes europeus desconversavam ou aproveitavam o feriado para não falar nada, Trump não deu folga no Twitter.
Escreveu que “o grande povo iraniano tem sido reprimido há muitos anos” e “tem fome de comida e liberdade”. O tom algo grandioso depois ficou mais direto: “O povo está finalmente abrindo o olho para como seu dinheiro está sendo roubado e desperdiçado com terrorismo”.
O realinhamento de Trump, que se aproximou do eixo sunita, em especial Arábia Saudita e Egito, para estabelecer uma aliança contra o arco xiita, é muito mais do que uma dor de cabeça para o regime iraniano. Apesar das incertezas, com os sauditas atolados no Iêmen – outro cenário de confronto com o Irã – e na transição, a vida não vai ficar mais fácil para a teocracia xiita.
O fato de que existam camadas da população que não engolem propaganda oficial e rejeitam tudo o que o regime faz, inclusive os recursos consideráveis colocados na Síria, no Iraque e no Hezbollah, também ajuda a colocar areia no kebab dos manda-chuvas.
O cenário que se desenha não é exatamente misterioso e pode ser resumido assim: o Irã ganhou a guerra na Síria, um feito de enormes proporções, mas perdeu a eleição nos Estados Unidos. Agora, vai usar o Hezbollah para um atrito com Israel cujo desfecho é imponderável.
“Eles estão mais perto de nossas fronteiras do que nunca”, disse em outubro o chefe do Mossad, Yossi Cohen, que ocupa o tipo de cargo onde não se faz declarações, manda-se recados.
Com um formidável aparelho repressivo e o apoio de uma parte considerável da população, o regime iraniano tem folgadas condições de reprimir, as manifestações com mais ou menos brutalidade habitual, dependendo do rumo que tomem.
Nos grandes protestos de 2009, alguns manifestantes perguntavam: “Obama, Obama, de que lado você está?”. Interessado no acordo nuclear, pelo qual, sabe-se agora, mandou desarticular até uma grande investigação sobre tráfico de drogas e lavagem de dinheiro comandados pelo Hezbollah, Obama ficou em silêncio.
Agora, incrivelmente, Philip Gordon, que foi assessor para o Oriente Médio durante o governo Obama, escreveu no New York Times que a melhor coisa que a melhor atitude que Trump teria a tomar seria : “Fique quieto e não fale nada”.
Muitas surpresas podem acontecer no Oriente Médio expandido, onde a instabilidade crônica vive vários momentos agudos, mas com certeza Trump não vai ficar quieto.
Isso ajuda ou atrapalha? Talvez nem uma coisa nem outra. E talvez, pelo menos, parem de falar que os iranianos estão protestando contra o preço do ovo.