segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

"O que realmente nos choca?", por Priscila Cruz

O Globo


Os governos aproveitam-se da pouca indignação da própria população por educação de qualidade. Há sempre algo mais urgente


O que revela a pouca atenção dada a uma das notícias mais preocupantes divulgadas no ano passado? Cinquenta e cinco por cento de nossas crianças de 8 anos não estão alfabetizadas, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Pior ainda, quase não repercutiu a enorme diferença de resultados por nível socioeconômico — 70% das crianças mais pobres não estão alfabetizadas. Assim, o analfabetismo e a baixa prioridade dada à educação continuam a alimentar e aprofundar nossa já enorme exclusão social e econômica.


São crianças já no 3º ano do ensino fundamental, que prosseguem na trajetória escolar sem a condição mais basilar para aprender o que é de direito e para colocar em prática seus projetos de vida, sejam quais forem. Como continuar os estudos sem estar alfabetizado? Sabemos a resposta. A maioria dos alunos está na escola, mas não aprende. 

Eis a crise da aprendizagem à qual estamos presos. Sim, temos ilhas de excelência. Das cem melhores escolas brasileiras de ensino fundamental, 76 estão no Ceará, um estado com renda per capita abaixo da média nacional.

Não há desculpas, a pobreza não pode justificar resultados ruins. Ainda que haja evidências do que pode garantir a alfabetização de todas as crianças na idade certa, estas são áreas que, infelizmente, ainda recebem pouca atenção: a primeira infância e o desenvolvimento profissional docente. O preço dessa histórica negligência é altíssimo. 

Dada a falta de qualidade e integração entre as políticas de educação, saúde, assistência social, cultura e esporte, as crianças de 0 a 6 anos têm o desenvolvimento cognitivo, físico-motor, emocional e social comprometido, justamente na fase da vida cuja possibilidade de avanço é enorme. Investimos pouco e mal nas crianças.

E, obviamente, não existe qualidade de ensino sem professores bem preparados e motivados. As políticas de atratividade, formação e carreira docente, além da garantia de condições de trabalho adequadas, devem ser centrais.

Enquanto isso, os governos aproveitam-se da pouca indignação da própria população por educação de qualidade. Há sempre algo mais urgente do que a morte lenta que tentamos não enxergar. E assim adiamos trilhar o caminho que poderia nos conduzir a um país maior, mais justo, mais seguro, com mais oportunidades para todos.

Priscila Cruz é presidente-executiva do movimento Todos Pela Educação