Eduardo Graça, O Globo
LOS ANGELES — Quando vê a quantidade de diários espalhados na mesa à frente do repórter do GLOBO, o entrevistado não resiste: “Que curioso, você ainda lê jornais em papel!”. A exclamação é de Clint Eastwood, 87 anos, intrigado com as publicações que serviriam de distração caso ele se atrasasse. Mas o vencedor de cinco Oscars (melhor filme e diretor em 1993 e 2005, por “Os imperdoáveis” e “Menina de ouro”, além do prêmio especial de produção em 1995) chega antes da hora marcada e, passos rápidos, voz baixinha, logo se diz interessado em olhar para a frente.
Em seu mais novo longa, “15h17 — Trem para Paris”, que chega em 8 de março aos cinemas, Eastwood inova ao escalar para os papéis principais os mesmos três amigos californianos que, em férias na Europa, foram responsáveis por render um terrorista, evitando um massacre em 21 de agosto de 2015, dentro do trem Amsterdã-Paris. Spencer Stone, Alek Skarlatos e Anthony Sadler escreveram o livro no qual o filme é baseado, mas jamais haviam atuado.
Foi somente depois de muita conversa com o diretor que decidiram embarcar na proposta de Eastwood de colocar o espectador “de fato” dentro da ação. “Quis extrapolar o limite de até onde podíamos levar a realidade para um thriller de ficção”, diz o cineasta. Ele convenceu até mesmo as vítimas — como o casal Mark e Isabelle Moogalian — a reencenar os eventos de dois anos e meio atrás. A exceção óbvia no jogo de espelhos foi o terrorista, o marroquino Ayoub El Khazzani, acusado de ter ligações com o Estado Islâmico, que permanece preso na França. O papel ficou com Ray Corasani.
“15h17” é o experimento mais radical de narrativa de Eastwood em uma trilogia informal voltada para o estudo de heróis comuns, capazes de alterar o rumo da História com H maiúsculo, iniciada em “Sniper americano” (2015) e seguido por “Sully — O herói do Rio Hudson” (2016). “O que une os três filmes é o humanismo, a decisão, muitas vezes no calor da hora, de se fazer algo pelo bem alheio, ainda que arriscando a sua própria vida.
Nesta altura do campeonato, é o que me interessa mais em trazer para o meu trabalho”, afirma Eastwood. Os principais trechos da conversa exclusiva com O GLOBO seguem abaixo:
Quando o senhor decidiu que seus protagonistas seriam os próprios Spencer, Alek e Anthony?
Imediatamente depois de conhecê-los, pois me pareceu a coisa certa a fazer. Ainda estava pensando no que iria dirigir depois de “Sully” e fui apresentado aos três meninos. Fiquei impressionadíssimo, e um deles, em tom jocoso, brincou que o livro deles valia um filme. O tempo passou e fiquei com aquilo na cabeça. Cá comigo, pensei: sim, vale um filme, mas teria de ser feito de uma maneira que de fato prendesse a atenção do público. O semblante deles me veio à cabeça, como se mexiam, como falavam uns com os outros, e não tive dúvida: eles eram os caras, vivendo aquelas situações todas uma vez mais! Queria que o espectador ficasse pensando o que seria realidade 100% e o que seria filme.
Seria algo assim como um quase-documentário, já que a narrativa é contada também por meio de atores, inclusive com as crianças que vivem os três na infância em Sacramento?
Sim, todo o passado é feito com atores “de verdade”. E, como você pode imaginar, me toquei que seria um desafio tremendo para mim, a esta altura, mesclar não atores com profissionais em um longa, mas não foi coisíssima nenhuma. Até porque eu já havia experimentado antes esse mix, de maneira, é verdade, bem menos radical, em “Gran Torino” (2008), por exemplo. Já havia ali uma vontade minha, de diretor, de quebrar essa barreira. Alguns executivos ficaram preocupados, e com razão, porque a coisa toda poderia desandar. Mas fui bem claro: quero trazer a realidade para a tela de forma quase literal. Precisava da presença física de Spencer, Alek e Anthony para fazer o filme que queria.
O senhor chegou a pensar em atores para os papéis?
Muito no começo, mas na minha cabeça... Eu queria reviver aquele momento como se estivesse de fato lá, não tinha outro jeito. Nas filmagens de fatos históricos, por exemplo, em “Cartas de Iwo Jima” (2006), dá para contar com especialistas presentes no set para questões de última hora. Mas nada se compara a ter o luxo de perguntar, para os protagonistas, cada dúvida que me ocorria na hora de filmar. Isso foi algo absolutamente singular para mim, e quero seguir olhando para a frente. A voz deles era tão ou mais importante do que a minha naquele momento. Sabe como eu dirigi os três, a grosso modo, nas cenas no trem?
Por favor, conte...
Fácil: “Façam o que vocês fizeram naquele dia e do jeito que vocês se lembram”. E pronto. No trem, eles já eram quase veteranos (risos)! Deixei, estrategicamente, as cenas dramáticas — quando eles precisam interagir com o elenco profissional, na viagem pela Europa — para o fim, porque os três meninos já estariam mais familiarizados com tudo. Acho inclusive que eles têm futuro em Hollywood. Até os nomes de estrelas eles têm: Spencer! Alek! Sadler!
Há quem veja este como o derradeiro filme de sua trilogia em torno de cidadãos comuns que se tornaram heróis americanos contemporâneos. É assim que o senhor vê “Sniper”, “Sully” e, agora, “15h17”?
Não pensei desse jeito, mas pode ser. Dei motivo para essa interpretação, sem sombra de dúvida, né? Posso argumentar que há uma diferença central, que é o fato de Chris Kyle (1974-2013), vivido em “Sniper” por Bradley Cooper, ter tido um fim terrível, ao contrário dos outros. Mas o que me interessou, nos três casos, foi sim tratar de pessoas que fizeram atos extraordinários, e em benefício dos outros. Teria feito esses três filmes exatamente do jeito como os dirigi, se voltasse hoje ao set e à ilha de edição. Há algo real, de busca minha por uma narrativa mais realista, que está presente neles todos, que os une. Tem uma coisa que você vai achar interessante...
...que é?
...não vou dizer exatamente quem, porque não pedi permissão a ele, mas mostrei há poucos dias o corte final de “15h17” para um ator que trabalhou comigo em um desses meus filmes que você citou. Um amigo querido, que é também um dos mais conceituados do cinema americano.
E o que o Tom Hanks, protagonista de “Sully”, disse (risos)?
(rindo) Não posso mesmo dizer o nome, mas esse amigo me disse: “Clint, agora você chegou na verdade que você tanto queria encontrar. Era isso!”. Ele dizia que havia visto algo ainda mais real do que o filme que fizemos juntos. Foi o melhor elogio que eu podia ter recebido.
“Sniper” e “Sully” são centrados em dois indivíduos, mas “15h17” vai além, não?
Concordo. É um filme também sobre a amizade, sobre a importância, nesta vida, de se construir uma equipe, um time, alianças. É sobre o fato de que eles terem feito o que fizeram por estarem juntos, e pela série de coincidências que os colocou naquele momento, naquele trem, naquele vagão, naquele dia, naquela hora.
Os três amigos se conheceram em uma escola cristã e essa série de coincidências é percebida por eles com uma forte carga mística. O senhor é uma pessoa religiosa?
Humm... Bem, a ideia de que há um destino... Essa crença deles funciona para a narrativa do meu filme. Eu não tenho, como eles, um background religioso. Agora, tenho sentimentos íntimos sobre o tema. E esse episódio me fez pensar sobre minha vida. Essa história é uma daquelas que te fazem pensar se há algo mais além do que conseguimos perceber em nossas existências. E deixo esse tópico assim em nossa conversa (risos).
O senhor incluiu no filme algumas imagens, tanto reais quanto reencenadas, da cerimônia em que o então presidente francês François Hollande celebra os heróis de seu filme e também da recepção dos três em Sacramento, na Califórnia, quando são saudados pela população local em desfile em carro aberto, mas não usou cenas da Casa Branca, quando eles foram homenageados pelo presidente Obama...
Para mim, foi importante focar em um aspecto humanista da história, e Hollande fala, naquele momento, com propriedade, de eles terem provado, em uma situação-limite, a ideia de o mundo ser um só. Estamos vivendo uma era, para usar um eufemismo, bem estranha. Passamos por vários ataques terroristas, e virão outros mais. Considerei importante mostrar seres humanos se juntando contra uma ameaça anti-humanista, não importando a nacionalidade das pessoas naquele vagão. Você me fez pensar agora em algo que me faz voltar ao começo de nossa conversa: se eu tivesse escalado estrelas para os papéis centrais, figuras conhecidas mundo afora, essa sensação de que tratei aqui seria diminuída.
O senhor é, digamos assim, um ator um pouco mais experimentado do que seus três protagonistas neste filme...
...um pouquinho, sim (risos).
E é, também, um dos mais celebrados diretores do cinema americano. Se e quando o senhor pensa em sua trajetória, qual diria que foi o momento em que se sentiu mais realizado profissionalmente, seja como ator, seja como diretor?
Hum... Difícil isso, inclusive separar a realização profissional da pessoal. Sei que fui uma pessoa de muita sorte na vida, algumas coisas aconteceram na hora certa com as pessoas certas, ainda que quase sempre com alguma dificuldade. Mas, se tivesse que escolher um único momento, seria relacionado a “Os imperdoáveis” (1992).
As filmagens em si, a consagração da crítica e do público, o reconhecimento de seus pares com os quatro Oscars recebidos pelo filme?
Mais do que isso tudo, a possibilidade de subir no palco naquele momento e saber que minha mãe estava na plateia. Sei que diziam isso com alguma frequência, basta pensar na festa deste ano, mas em 1993 também havia um burburinho de que aquele seria o “ano da mulher no Oscar”. Pois, para mim, ele acabou se concretizando de uma forma muito pessoal: a felicidade, a emoção dela, da mulher mais importante da minha vida. Foi inesquecível.