domingo, 28 de janeiro de 2018

"As surpresas da prisioneira 29700", por Leandro Karnal

O Globo



Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo

Sou amigo de Thereza e Gustavo Halbreich há anos. O casal convidou-me algumas vezes para jantares, inclusive celebrações do ano-novo e da Páscoa judaicos. Anfitriões maravilhosos, tenho lindas memórias de tocar piano na casa deles e conversar sobre temas variados. 
Graças a essa amizade que prezo muito, também tive contato com dona Eugênia, mãe do Gustavo. Ela me encantou desde o começo. Queria falar um pouco do que ouvi dela e do filho sobre a aventura da vida.
Apresento-lhes dona Eugênia: sotaque forte, olhar carinhoso, otimista sempre, sociável, incapaz de ouvir um não diante da recusa da décima porção de gefilte fish, servida acompanhada de histórias sobre carpas em banheiras na Polônia. 
Dona Eugênia nasceu em Cracóvia, no dia 20 de setembro de 1919. Casou-se em janeiro de 1939. A Segunda Guerra despontava no horizonte. Mulher lúcida, foi testemunha da ascensão da barbárie nazista. Em 1941, foi para a Rússia, fugindo dos assassinatos e execuções na sua terra natal. No país vizinho, recebia as notícias angustiantes sobre seus pais e parentes, encarcerados em condições degradantes no gueto de Cracóvia. Tomou a decisão ousada e quase mortal de retornar para a Polônia para amparar a família.
Não preciso fazer uma narrativa demorada sobre as condições do gueto. Todos conhecem o nível de desumanidade atingido naqueles espaços. Alguns parentes dela eram socialistas e o nazismo tinha um duplo ódio contra judeus de esquerda. Foram removidos para Auschwitz. Dona Eugênia recebeu no braço o número 29700. Os pais dela foram executados: ele com uma injeção de benzina e a avó de Gustavo na câmara de gás. Os irmãos tiveram destinos variados, dois foram enforcados por terem participado da resistência antinazista e outra parte da família partiu para construir Israel. 
Quando os campos começaram a ser abandonados pela proximidade do exército soviético, a jovem Eugênia conseguiu evitar a “marcha da morte”, embrenhando-se em um buraco gelado e ali ficando dois dias em silêncio, esperando tudo passar. Foi encontrada por russos. Ao fim da guerra, um fato extraordinário: reencontrou seu marido Jakub Halbreich. 
A Polônia socialista não se revelara o paraíso prometido. Ao denunciar desvios de verbas na reconstrução do país, foi ameaçada de novo. Fugiu para a Suécia e veio para o Brasil. 
Houve três coisas extraordinárias na minha relação com dona Eugênia. A primeira é que eu queria ouvir muito o que tinha a dizer, porque era uma memória viva e pulsante do que ocorrera no Terceiro Reich. Ela havia passado por tudo e continuava leve, otimista, feliz e cheia de bondade no olhar. Não fora contaminada pelo horror que tinha presenciado. Ter sobrevivido em meio a tanta violência reforçara nela o amor à vida e a crença na humanidade. Foi uma experiência linda ouvi-la sobre como as coisas eram boas no novo mundo e como ela amou a terra brasileira. O coração de dona Eugênia não foi tomado pelo justo rancor de quem desceu ao mais terrível que a humanidade foi capaz. Essa foi a primeira coisa que aprendi com ela. Ela sobreviveu e decidiu abraçar a vida, mesmo tendo motivos inatacáveis para ser amarga. 
A segunda coisa foi um pequeno acidente de fala. Uma noite comentei que existia um grupo que negava a existência do Holocausto. Mostrei indignação viva, todavia supus que ela já soubesse. Ela não apenas desconhecia como não entendeu minha fala. Repeti, achando que era a língua original dela que a traía na compreensão. Dei nomes e livros e falei como nós, historiadores profissionais, combatemos esse gigantesco esforço antissemita e de ataque à memória real e documentada do Holocausto. Ela continuou fazendo cara de quem não estava acompanhando meu raciocínio. Só então veio a luz ao meu entendimento: uma mulher que esteve lá, no olho do furacão do genocídio, não entenderia que alguém pudesse dizer que aquilo não existiu. Ela não falava de uma opção estética ou um gosto culinário, mas da vida como ela a compreendia. Seria como eu dizer a você querida leitora e estimado leitor: seus pais não existem, são uma ficção... Dona Eugênia não compreendia o negacionismo do Holocausto. Não poderia. Era tão irracional que excedia mesmo sua mente atilada. Foi a segunda coisa extraordinária.
A terceira foi a mais tocante. Trabalhando e viajando demais, tive de recusar muitos convites para a casa dos Halbreich. Estive um pouco afastado dos amigos queridos e, um dia, estava com um grupo no Museu do Holocausto em Israel. Não era a primeira vez e eu já estava preparado para o impacto daquela memória do Yad Vashem. Passei pelas salas e tive a mesma experiência impactante da visão final ao sair do museu: as colinas de Israel, a sobrevivência dos nomes que o nacional-socialismo tinha tentado obliterar. Andando pelo caminho, topo com uma pedra escrita em hebraico e línguas ocidentais com o nome de dona Eugênia. Era uma estela votiva pela memória dela, colocada pelo Gustavo. Eu não sabia que ela havia falecido e chorei ali, naquele jardim. 
Ontem, ocorreu o dia da memória do Holocausto, 27 de janeiro. A data relembra a libertação de Auschwitz-Birkenau. Foi há 73 anos. A cicatriz ainda é funda. A mulher que tentei descrever morreu em 10 de fevereiro de 2010. Que nunca esqueçamos, que nunca se repita, que dona Eugênia viva para sempre. A soma do número de prisioneira 29700 dá 18, na tradição hebraica, a vida (chai). Viva a vida! Bom domingo para todos nós.