“Vamos fazer a disputa dentro do governo.” O objetivo, definido por Raimundo Bonfim, da Central de Movimentos Populares (CMP), é uma sentença opaca para os “de fora”, mas uma senha cristalina para os “de dentro”.
A “frente de esquerda” articulada duas semanas atrás numa reunião no Largo São Francisco, em São Paulo, é o veículo para a soldagem de partidos, centrais sindicais e movimentos sociais ao governo de Dilma Rousseff. É, ainda, de um modo menos direto, uma ferramenta da candidatura presidencial de Lula da Silva em 2018.
O conclave contou com representantes do PT e do PCdoB, partidos governistas, mas também do PSOL e do PSTU. No Largo São Francisco, os dois partidos aceitaram a condição de sublegendas informais do PT. Lá estava a CUT, que obedece ao comando lulista, mas também a Intersindical, um pequeno aparelho do PSTU.
A presença do MST, da Via Campesina e da Consulta Popular, três nomes para a mesma substância, inscreve-se no campo do óbvio. Mais relevante foi a participação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e do Levante Popular da Juventude, que emergiram com ambições de autonomia em relação ao lulopetismo.
A Arca de Noé da esquerda adotou uma agenda de manifestações cortada na alfaiataria do PT, cujos destaques são a reivindicação de uma Constituinte exclusiva para a reforma política e a “defesa da Petrobras”, uma bandeira que deve ser traduzida como a proteção das altas autoridades do governo diante das investigações da Lava-Jato.
Curiosamente, enquanto acusam Dilma de rendição às propostas de política econômica de Aécio Neves, as correntes reunidas no Largo São Francisco desenharam o esboço de um Partido de Esquerda do Planalto.
Duas mãos moveram o berço. A mão visível, de Guilherme Boulos, do MTST, funcionou como álibi para a adesão das correntes que pescam em águas situadas à esquerda do PT. A mão invisível, de Lula, apontou o rumo político da articulação, ancorando-a num porto encravado em sua esfera de influência.
O espantalho convocado como pretexto para a adesão geral são as manifestações pela “volta dos militares”, que atiçam apenas o interesse de um setor ridiculamente marginal da sociedade. O jogo da verossimilhança solicitou a marcação de atos públicos pela cassação de Jair Bolsonaro, um oportuno inimigo do peito, e de repúdio ao golpe militar de 1964, que completa redondos 51 anos.
O Brasil não é para principiantes. Em tese, o “giro ortodoxo” do governo Dilma, personificado em Joaquim Levy, provocaria a configuração de uma oposição pela esquerda. Contudo, desde a ascensão do lulopetismo ao poder, a esquerda tornou-se caudatária do Palácio.
A santa indignação dos “amigos do povo” contra a nomeação de Levy não se desenvolve na forma de uma ruptura política com o governo, mas em pedidos explícitos de compensações. Como esclareceu Lindbergh Farias, um petista que nunca viu motivos para camuflar o oportunismo, “fazer a disputa dentro do governo” significa emplacar “companheiros” em postos relevantes no aparelho de Estado — ou, no caso dos movimentos sociais, obter financiamentos da administração pública.
Kátia Abreu, Gilberto Kassab e Guilherme Afif são novas demonstrações da tese tantas vezes comprovada de que as convicções doutrinárias de nossos liberais conservadores não resistem à oferta de um feudo no condomínio do poder. Na era do lulopetismo, a constatação deve ser estendida a quase toda a esquerda.
O segundo mandato de Dilma, iniciado sob os signos do fracasso e da crise, descortina a farsa em toda a sua amplitude: as lideranças reunidas no Largo São Francisco cumprirão dupla jornada, revezando-se entre manifestações encomendadas e conchavos de gabinete com emissários de Lula.
A “frente de esquerda” certamente atende aos interesses de seus participantes, mas, sobretudo, aos de Lula. O ex-presidente, cuja candidatura a um terceiro mandato surgiu ainda durante a campanha reeleitoral de Dilma, planeja jogar em dois times. Em princípio, alinha-se com o governo do qual é fiador.
Nas semanas difíceis do segundo turno, diante do risco real de derrota, desdobrou-se em conversas com o alto empresariado para oferecer garantias de um retorno à racionalidade econômica. Por outro lado, desde a proclamação do resultado, manobra para desvincular a sua imagem dos efeitos da reorientação da política econômica. Na hipótese provável de erosão acelerada da popularidade do governo, Lula calibrará seu discurso no registro da “crítica pela esquerda”.
Aécio Neves declarou, há pouco, que Levy enfrentará mais dificuldades com o PT que com a oposição. O PSDB, sugere a declaração, estaria pronto a respaldar as “medidas impopulares” que derivam, em linha direta, de tantos anos de uma irracionalidade econômica fundada no cálculo político.
Do ponto de vista de Lula, esse é o cenário ideal para a construção de uma candidatura aureolada pela promessa de retorno aos “bons tempos” de crescimento da renda e do consumo. O ministro da Fazenda faria o “trabalho sujo” do ajuste fiscal, com o apoio tácito da oposição e sob o bombardeio retórico da “frente de esquerda”.
Na sequência, durante a etapa derradeira do governo agonizante de Dilma, Lula ergueria a bandeira dos interesses do “povo”, culpando a “elite” pelos sofrimentos impostos por um “banqueiro”. O longo ato de prestidigitação precisa apenas da colaboração de uma oposição incapaz de fazer política.
Os “amigos do povo” coligados na “frente de esquerda” conhecem perfeitamente a regra do jogo. Todos eles, da esquerda do PT ao PSOL, passando pela CUT e pelo MTST, sabem que operam como marionetes no teatro lulista — e que seus gritos indignados contra um golpe militar tão antigo ou um Bolsonaro tão insignificante são gestos automáticos num espetáculo farsesco. Mas isso já não importa: eles se acostumaram com a subserviência, o preço justo que pagam pela sobrevivência