Cidades brasileiras mostram que é possível criar barreiras contra as facções e reduzir os índices de criminalidade
U m dos mais recentes estudos da Organização das Nações Unidas (ONU), o Global Justice (2023), emite um sinal alarmante: o Brasil já entrou na lista das nações que abrigam um perfil de criminalidade qualificado como máfia. Em cidades com mais de 500 mil habitantes não é difícil perceber características que apontam para a existência de gangues de altíssima periculosidade: hierarquia rígida (sistema de comando estável); controle territorial (cobrança por “proteção” ou domínio sobre atividades econômicas locais); diversificação de atividades ilícitas (tráfico de drogas, armas, extorsão, contrabando, lavagem de dinheiro); infiltração no Estado e na economia legal (suborno de políticos, juízes, policiais e empresários); e código de silêncio regido por lealdade absoluta (ninguém fala, sob o risco de morrer).
São traços presentes no cotidiano brasileiro que prenunciam um futuro ainda mais degradante para o equilíbrio social. Da mesma forma, emparedam o Brasil ao lado de nações mal-afamadas globalmente pelo grau de violência urbana — casos de Venezuela e Colômbia. “O PCC [Primeiro Comando da Capital] já atingiu um status de máfia. Ele tem todos os requisitos doutrinários para ser considerado uma máfia”, diz o promotor do Ministério Público de São Paulo Lincoln Gakiya, que há mais de 20 anos atua no combate ao crime organizado.
A ONU também admitiu, no início deste mês, que a América Latina caminha a passos firmes e largos para se consolidar como o epicentro do crime organizado no mundo. Os cartéis do tráfico avançam indiferentes às fronteiras. Um simples dado pode ilustrar isso em termos de Brasil: entre 2023 e 2024, o número de municípios no Amazonas sob a pressão e a influência do PCC ou do Comando Vermelho cresceu 55%. A prevalência do crime nesses lugares explica, em grande parte, o fato de, numa escala de zero a dez — em que 10 é o nível mais crítico —, o Brasil ter pontuação 8 no Índice Global do Crime Organizado. Referente à edição anterior (2022), subiu meio ponto. “Uma das causas da proliferação de quadrilhas é uma ausência do Estado e uma legislação falha, permissiva à dominação de territórios por facções que oferecem uma falsa segurança para a população local”, diz Guaracy Mingardi, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
No vácuo da omissão estatal
Diversos estudos mostram que a prosperidade do crime organizado é proporcional à fragilidade institucional. A equação é simples: onde falta a mão firme do Estado, sobra o atrevimento do criminoso. “A ausência do Estado é fator estimulador da violência criminal, especialmente entre os jovens. A ausência do Estado na formação de políticas públicas de geração de emprego e renda levou o crime organizado a recrutar mão de obra entre jovens desempregados da periferia”, afirma o advogado e especialista em Direito Penal Miguel Juarez Zaim.
Determinadas cidades brasileiras parecem ter percebido que é melhor agir de forma proativa a ficar esperando apenas pela boa vontade da União e dos estados em prover a segurança pública, conforme prevê o artigo 144 da Constituição Federal. Mesmo com o relativo apoio de alguns governos estaduais, esses municípios entenderam que, na impossibilidade de reverter radicalmente o quadro de deficiência na ordem pública, é preciso colocar um freio na ousadia da bandidagem. Por meio de políticas de segurança estruturadas e parcerias estratégicas, tem sido possível alcançar e manter taxas de homicídio significativamente abaixo da média nacional.
Conforme o Anuário 2024 do indicador MySide, que se baseia em dados do Ministério da Saúde e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, São Bernardo do Campo (SP) lidera o ranking das cidades menos violentas entre aquelas com população que vai de 500 mil a um milhão de pessoas. O município do ABC paulista registra 8,4 homicídios por 100 mil habitantes. Em seguida vêm São José dos Campos (SP), com 8,7; Osasco (SP), com 8,9; e Ribeirão Preto (SP), com 9,3. Também figuram entre as dez mais bem colocadas Sorocaba (SP), com 9,7; Florianópolis (SC), com 10; Joinville (SC), com 10,3; Uberlândia (MG), com 10,4; Santo André (SP), com 14,5; e Cuiabá (MT), com 16,2. São marcas bem abaixo do parâmetro brasileiro de quase 23 homicídios, registrado em 2023. A diferença entre as mais seguras e as mais vulneráveis está na qualidade da articulação com o poder estadual; na capacidade de observar, planejar e executar ações que façam a bandidagem recuar; e no bom senso de que não é necessário nenhum plano espetacular: basta inteligência e determinação.
delegadodacunha - Na semana passada, estive em São José dos Campos em visita ao prefeito Anderson Farias (@andersonfariassjc) e ao vice-prefeito, Coronel Wilker Lopes (@wilkerlopessjc). Foi uma verdadeira aula de administração pública e gestão com foco no cidadão. Parabéns a vocês dois pelo excelente trabalho que vem fazendo na cidade! Tive também o prazer de conhecer o CSI – Centro de Segurança e Inteligência, acompanhado pelo Coronel Pires (@cel_a_pires). É impressionante ver de perto o funcionamento desse centro de inovação e sua aplicação prática no combate à criminalidade. Em seus 4 anos de atuação, o CSI já realizou mais de 3.198 atendimentos, recuperou 727 veículos, contribuiu para a detenção de 1.526 suspeitos e a captura de 332 foragidos. O CSI é referência nacional no uso de tecnologia na segurança pública e saio dessa visita ainda mais inspirado: reafirmo meu compromisso de estar sempre ao lado dos gestores e profissionais que fazem a diferença na vida da população. Estamos juntos por uma gestão pública eficiente e uma cidade cada vez mais segura! Pra cima deles, São José dos Campos! 👊🏾 #DelegadoDaCunha #PraCimaDeles #SãoJoséDosCampos #SegurançaPública View all 16 comments
Tolerância zero para os ‘batidões’
Em São Bernardo do Campo, a Prefeitura, sob a liderança de Marcelo de Lima Fernandes (Podemos), lançou em janeiro de 2025 a “Operação Segurança Direto ao Ponto”. Neste caso, a Guarda Municipal ronda e fiscaliza permanentemente os locais de acesso a transportes públicos, como pontos de ônibus, onde, no passado, criminosos agiam com liberdade para realizar assaltos. Nos cinco primeiros meses de 2025, o roubo de objetos pessoais caiu quase 15%. Eventos como os “batidões”, que costumam reunir jovens sob efeito de álcool e drogas, são inibidos pela “Operação Dorme Bem”. É uma espécie de tolerância zero contra a desordem e a perturbação do sossego. A medida desmobiliza um ambiente fértil para confusões que atormentam a vizinhança, produzem brigas passíveis de assassinatos e irrigam a rede do crime.
“A operação tem sido essencial para coibir a perturbação da ordem e do sossego, além de reforçar principalmente o enfrentamento ao tráfico de drogas”, diz o major e secretário de Segurança Urbana da cidade, Arley Topalian. Esse tipo de atenção impediu, por exemplo, que a cidade recebesse um carregamento de quase meia tonelada de maconha procedente de Tatuí, no interior de São Paulo. Ao ser abordado pela Polícia Civil, o motorista, de nacionalidade paraguaia, disse que carregava plástico moído. Os policiais conduziram a carreta até a delegacia e encontraram 500 tijolos da droga na traseira do veículo.
Segunda colocada no ranking, sob a gestão do prefeito Anderson Farias (PSD), São José dos Campos, no Vale do Paraíba, tem como uma das principais armas o Centro de Segurança e Inteligência (CSI). Instalado no Parque de Inovação Tecnológica, o setor consiste em um avançado sistema de monitoramento urbano que capta imagens por meio de 1,2 mil câmeras inteligentes em pontos cruciais da cidade, como ruas, praças e parques. Os dispositivos, que também se integram a equipamentos em âmbito privado, como condomínios residenciais e empresas, fazem reconhecimento facial, leitura automática de placas de veículos, rastreamento de pessoas e objetos, detecção de movimento e monitoramento do tempo de permanência.
Tecnologia reduz roubos em quase 80% As imagens captadas são avaliadas e armazenadas com data, hora e local, permitindo o registro de ocorrências em tempo real. Nesta segunda-feira, 25, quando produzia essa reportagem, a Revista Oeste foi informada de que a Polícia Civil acabava de prender um rapaz na periferia. A fisionomia do detido, abordando e roubando a moto de um homem que estava em companhia da filha menor, aparece nas câmeras do CSI. O assaltante, um foragido da Justiça, está preso.
Desde que entrou em operação, em 2021, o CSI já registrou mais de 3 mil ocorrências. Seu trabalho ajudou a reduzir em quase 80% os roubos de carros, além de recuperar mais de 700 veículos, deter 1,5 mil suspeitos e capturar mais de 300 pessoas com ordem de prisão. “O CSI é referência nacional no uso de tecnologia contra o crime”, avalia o secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Guilherme Derrite, que visitou o Centro em março deste ano.
Em Osasco, na Região Metropolitana de São Paulo, o que se vê é uma combinação de providências simples e eficientes. Desde 2021, a Prefeitura, administrada por Gerson Pessoa (Podemos), aumenta o efetivo de guardas municipais. Somente em 2023, 164 novos profissionais foram empossados. Ao mesmo tempo, a estrutura ganha o reforço de viaturas novas e equipamentos modernos, que vão de robustos escudos balísticos a drones. A cidade também criou unidades especializadas, como a Ronda Ostensiva Municipal (Romu) e a Ronda Operacional com Motocicleta (Romo). A exemplo de São José dos Campos, Osasco investe em câmeras de monitoramento. “Tecnologia e treinamento são a parte mais importante para avançar no combate ao crime”, afirma o secretário de Segurança e Controle Urbano de Osasco, José Virgolino de Oliveira.
Com seis das dez cidades mais seguras no ranking, o Estado de São Paulo apoia-se numa doutrina clara para ajudar os municípios. O governador Tarcísio de Freitas afirma que é preciso “enquadrar o crime organizado e as facções de forma semelhante a organizações terroristas”. Acrescenta ser essencial enfrentar os criminosos e as facções “de forma mais robusta na legislação”. Um exemplo prático desse rigor foi dado nesta última quinta-feira, 28, quando a Secretaria de Segurança Pública do Estado mobilizou um batalhão de quase 800 policiais para, em conjunto com o governo federal, desenvolver uma megaoperação. O objetivo é investigar e encontrar as soluções mais efetivas para asfixiar o sofisticado mecanismo fraudulento instaurado pelo PCC em dezenas de municípios espalhados pelo Brasil, entre eles, São Paulo, São José do Rio Preto, Campinas, Piracicaba, Ribeirão Preto, Bauru e Sorocaba. “A asfixia financeira do crime organizado é o nosso foco. Essa ação integrada entre as forças de segurança ataca diretamente o núcleo do problema, onde esses criminosos conseguem lucros vultuosos de forma fraudulenta, prejudicando toda cadeia econômica e, principalmente, a população de diversos estados brasileiros”, afirma o secretário Guilherme Derrite. Segundo o governo federal, entre 2020 e 2024, o crime organizado movimentou R$ 52 bilhões por meio de fraudes. As atividades incluem, entre outras manobras, a importação de produto químico para o uso na adulteração de combustível que abastece centenas de postos de gasolina e etanol integrados à rede criminosa. Para maquiar o negócio, o PCC usava um banco digital e lavava dinheiro em fundos de investimento como forma de ocultar patrimônio.
Eles são como “terroristas”
Com seis das dez cidades mais seguras no ranking, o Estado de São Paulo apoia-se numa doutrina clara para ajudar os municípios. O governador Tarcísio de Freitas afirma que é preciso “enquadrar o crime organizado e as facções de forma semelhante a organizações terroristas”. Acrescenta ser essencial enfrentar os criminosos e as facções “de forma mais robusta na legislação”. Um exemplo prático desse rigor foi dado nesta última quinta-feira, 28, quando a Secretaria de Segurança Pública do Estado mobilizou um batalhão de quase 800 policiais para, em conjunto com o governo federal, desenvolver uma megaoperação. O objetivo é investigar e encontrar as soluções mais efetivas para asfixiar o sofisticado mecanismo fraudulento instaurado pelo PCC em dezenas de municípios espalhados pelo Brasil, entre eles, São Paulo, São José do Rio Preto, Campinas, Piracicaba, Ribeirão Preto, Bauru e Sorocaba. “A asfixia financeira do crime organizado é o nosso foco. Essa ação integrada entre as forças de segurança ataca diretamente o núcleo do problema, onde esses criminosos conseguem lucros vultuosos de forma fraudulenta, prejudicando toda cadeia econômica e, principalmente, a população de diversos estados brasileiros”, afirma o secretário Guilherme Derrite. Segundo o governo federal, entre 2020 e 2024, o crime organizado movimentou R$ 52 bilhões por meio de fraudes. As atividades incluem, entre outras manobras, a importação de produto químico para o uso na adulteração de combustível que abastece centenas de postos de gasolina e etanol integrados à rede criminosa. Para maquiar o negócio, o PCC usava um banco digital e lavava dinheiro em fundos de investimento como forma de ocultar patrimônio.
De modo geral, dizem os pesquisadores, o que as cidades mais seguras têm em comum é a eficiência do modelo de governança, que prioriza estratégias como o policiamento integrado, o uso de tecnologia de inteligência e o investimento social, especialmente em educação e na infraestrutura. “Uma rua mal iluminada consome um batalhão de polícia”, afirma Sabrina Oliveira de Figueiredo, doutora em Administração pela Universidade Federal do Espírito Santo e especialista em segurança pública.
A falta de zelo pelas condições básicas de segurança coloca outra dezena de cidades no lado inverso da tabela. Enquanto São Bernardo do Campo tem 8,4 homicídios por 100 mil habitantes, Maranguape (CE) registra 79,9 mortes e é a campeã da violência no Brasil, seguida por Jequié (BA), 77,6 mortes; Juazeiro (BA), 76,2; Camaçari (BA), 74,8; Cabo de Santo Agostinho (PE), 73,3; São Lourenço da Mata (PE), 73; Simões Filho (BA), 71,4; Caucaia (CE), 68,7; Maracanaú (CE), 68,5; e Feira de Santana (BA), com 65,2 homicídios por 100 mil habitantes.
Camarote para o crime organizado
O que mantém essas cidades no topo da violência são fatores opostos aos ambientes mais seguros. A omissão estatal e a incompetência dos gestores públicos locais desenham o cenário ideal para a tragédia. Afinal, para a máfia do crime organizado, nada mais convidativo do que a liberdade para a disputa pelo controle do tráfico de drogas e dos pontos de venda.
Outra porta de entrada é o crescimento urbano
desordenado. Em busca de voto e de outros interesses, políticos
oportunistas acomodam populações em áreas precárias, que se
tornam inacessíveis ao policiamento e proliferam bolsões de pobreza,
verdadeiros camarotes para o crime organizado.
Fábio Bouéri - Revista Oeste