Ilustração Revista Oeste
À medida que a mídia tradicional dobra seu apelo à censura e à manipulação do debate público, a dependência do público em fontes descentralizadas continua a crescer
Durante grande parte do século 20, a mídia tradicional foi considerada um pilar das democracias e uma força crítica para a responsabilidade, transparência e verdade. Jornais, redes de rádio e televisão e revistas respeitáveis detinham uma posição única de confiança e influência.
O jornalismo investigativo inovador, como a cobertura do escândalo de Watergate pelo The Washington Post, expôs as vísceras dos mais altos níveis do governo, levando à renúncia do presidente americano Richard Nixon, em 1974, e marcando uma virada na conscientização do público sobre a mídia como um cão de guarda do poder político.
A mídia tradicional era percebida como um árbitro imparcial, responsabilizando os líderes por meio de relatórios objetivos e completos. Integridade jornalística, precisão e imparcialidade eram valores fortemente associados aos veículos de notícias tradicionais, estabelecendo com o público um vínculo de confiança que perdurou por gerações. As empresas de mídia priorizaram a noção de um “serviço público”, visando informar os cidadãos e promover uma democracia bem informada.
Por décadas, a mídia tradicional deteve um monopólio virtual sobre o fluxo de informações, servindo como a principal fonte de notícias para o público e como os autoproclamados guardiões da verdade. Essas instituições de mídia se posicionaram como defensoras da democracia e campeãs da liberdade de expressão, incorporando uma missão de informar o público sem interferência.
No entanto, conforme a internet e as plataformas virtuais surgiram, o cenário da mídia tradicional foi fundamentalmente transformado. As informações se tornaram descentralizadas, diversas e acessíveis a qualquer pessoa com uma conexão à internet, efetivamente encerrando o controle exclusivo da imprensa tradicional sobre quais histórias eram contadas e como eram enquadradas. Essa perda de controle desencadeou uma forte reação de muitos veículos tradicionais, que agora enfrentam a realidade de que são apenas uma das muitas vozes competindo na era da informação digital.
A ascensão da mídia alternativa, jornalistas independentes e comentaristas de mídias sociais introduziu uma série de perspectivas, muitas vezes destacando pontos de vista e informações que a imprensa tradicional negligencia ou evita ativamente. Longe de celebrar esse pluralismo como um testamento à liberdade de expressão, a mídia tradicional tem demonstrado crescente desdém por essa nova realidade, frequentemente caracterizando vozes alternativas como “desinformação” ou “perigosas” para o discurso público. Em uma reviravolta irônica, as mesmas instituições que antes eram os faróis da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa começaram cada vez mais a pressionar pela censura, muitas vezes defendendo restrições a informações que consideram “enganosas” ou “não verificadas”.
Os veículos da imprensa tradicional frequentemente pedem regulamentações mais rígidas em plataformas de mídia social, pressionam empresas de tecnologia a implementar moderação de conteúdo e apoiam vozes censoras. Eles argumentam que na circulação livre de informações há o perigo de espalhar falsidades. Embora a intenção seja enquadrada como proteger o público da desinformação, a verdade é que esses esforços para controlar quais informações as pessoas podem acessar são uma tentativa de recuperar a influência perdida.
Essa mudança de defender o diálogo aberto para apoiar a censura é percebida por muitos como uma tentativa de sufocar a competição e retomar o controle sobre a opinião pública.
Ao rotular a mídia alternativa e as vozes independentes como “marginais” ou “não confiáveis”, a imprensa tradicional busca minar a credibilidade dos concorrentes, tentando se restabelecer como a fonte única e confiável de notícias. No entanto, essa abordagem tem corroído ainda mais a confiança do público — as pessoas reconhecem hoje a natureza seletiva do que a mídia tradicional rotula como “verdade”. Cada vez mais, o público vê esse impulso para a censura não como um meio de garantir a precisão, mas como um esforço para controlar narrativas, restringir o debate e limitar a exposição a pontos de vista que desafiem interesses estabelecidos.
Um exemplo definitivo dessa mudança ocorreu durante a corrida para a eleição presidencial dos EUA de 2020, quando o The New York Post publicou uma história sobre o conteúdo do laptop de Hunter Biden, que continha e-mails e documentos detalhando suas negociações comerciais nada republicanas e que envolviam um caminho de influência política por intermédio do pai, Joe Biden, na época vice-presidente de Barack Obama.
A história indicou o potencial envolvimento da família Biden em transações financeiras controversas e ilegais e, em uma demonstração chocante de censura, as principais plataformas de mídia social, como Twitter e Facebook, rapidamente restringiram a história, impedindo os usuários de compartilhá-la e descartando-a como “desinformação” sem uma investigação completa. Os principais veículos da imprensa tradicional ignoraram amplamente a história, enquadrando-a como “não confiável” e optando por não se envolver com suas alegações substantivas.
Nenhum trabalho investigativo foi feito pelos grandes veículos de imprensa. Esse esforço concentrado para silenciar a discussão sobre o laptop do filho do então candidato à Presidência dos Estados Unidos da América escancarou uma disposição perturbadora de suprimir vozes e narrativas dissidentes que poderiam desafiar a ordem política estabelecida. A censura em torno da história do computador de Hunter Biden gerou indignação generalizada e destacou a tendência alarmante da mídia tradicional em agir não como observadora neutra, mas como partidária tentando controlar o debate e o caminho das eleições.
Muitos viram as ações da imprensa como uma tentativa de proteger a campanha de Biden do escrutínio em uma eleição marcada por profunda polarização. As consequências desse incidente só aprofundaram a desconfiança pública na mídia tradicional, pois ficou claro que instituições poderosas estavam dispostas a fazer grandes esforços para suprimir informações que pudessem atrapalhar suas narrativas preferidas.
Reportagens seletivas e o impulso pela censura levaram muitos a questionar se a imprensa tradicional ainda era um cão de guarda democrático ou se havia se tornado uma defensora de certas ideologias e agendas. Uma vez vistas como defensoras da liberdade de expressão, algumas instituições de mídia tradicional agora apoiam e incentivam a censura de pontos de vista que consideram controversos ou enganosos.
Ao pedir uma regulamentação mais rigorosa da informação nas plataformas de mídias sociais, desativando vozes independentes e rotulando visões dissidentes como “desinformação”, a imprensa tradicional parece menos comprometida com a transparência e mais interessada em controlar narrativas. Isso representa uma significativa mudança em relação ao jornalismo imparcial e equilibrado que antes definia essas instituições.
E nesta semana, Jeff Bezos, um dos homens mais ricos do mundo, dono de um dos veículos mais influentes da imprensa mundial, o jornal The Washington Post, sentiu oficialmente o baque da realidade: as chaves dos portões do monopólio da informação não pertencem mais aos bilionários e suas agendas políticas. Na segunda-feira, 28 de outubro, Bezos defendeu a decisão do Washington Post de não endossar um candidato presidencial como “baseada em princípios”.
Apesar de o jornal ter endossado candidatos democratas nos últimos anos, o bilionário fundador da Amazon argumentou que os americanos acreditam que a imprensa está tendenciosa. Na sexta-feira, 25 de outubro, o editor do Washington Post, William Lewis, disse que o jornal não apoiaria um candidato presidencial na eleição americana deste ano ou em eleições futuras, uma postura que gerou indignação de alguns de seus funcionários atuais e antigos, bem como dos assinantes.
Após a decisão, dezenas de milhares de leitores supostamente cancelaram suas assinaturas, enquanto um terço do conselho editorial do jornal renunciou. A equipe editorial do veículo estava preparada para apoiar a democrata Kamala Harris antes de Lewis escrever que seria melhor para os leitores decidirem por si mesmos. Em “uma nota do nosso proprietário” , publicada na noite de segunda-feira, Bezos disse que os endossos editoriais criam uma percepção de parcialidade em um momento em que muitos americanos não acreditam na mídia e acrescentou que gostaria que a decisão de encerrar os endossos presidenciais tivesse sido tomada antes.
A decisão de Bezos causou uma onda de ira sem precedentes tanto dentro do jornalismo quanto fora dele. No entanto, a decisão de Bezos seguiu uma ação do proprietário do Los Angeles Times, Patrick SoonShiong, de bloquear o endosso do jornal à vice-presidente Kamala Harris, o que também estimulou a renúncia de vários membros do conselho editorial.
Em seu editorial, Bezos afirma que sua intenção é transformar sua mensagem em “uma voz crível, confiável e independente”, sem nenhum viés político. Mas, como dizem os americanos, “too little, too late” — “tarde demais”, no bom português. Para que essa declaração tivesse algum peso, Bezos teria que demitir cada um dos militantes presunçosos que menosprezaram publicamente sua decisão e que insistem em afirmar que um lado político no cenário americano — o dos republicanos — é composto de fascistas.
A queda da influência da mídia tradicional sinaliza uma nova era em que a informação não é mais rigidamente controlada por um pequeno número de instituições selecionadas. Com a ascensão da mídia digital e do jornalismo independente, o público agora tem acesso a um espectro mais amplo de pontos de vista, permitindo um discurso público mais diverso e dinâmico.
À medida que muitos da imprensa tradicional dobram seu apelo à censura e à manipulação do debate público, a dependência do público em fontes descentralizadas continua a crescer, impulsionada por um desejo por informações não filtradas e perspectivas diversas. Essa divisão crescente reflete uma mudança profunda no relacionamento do público com a mídia, sinalizando que a era da autoridade incontestável da imprensa tradicional está terminando e um império está colapsando.
Ana Paula Henkel, Revista Oeste