segunda-feira, 16 de setembro de 2024

'A Hora da Anistia', por Ruth Moraes e Sílvio Navarro

 

Dupla medonha Lula-Moraes, Reprodução


Hoje o meu esposo não volta!” Com um pequeno cartaz que estampava os dizeres “Justiça por Clezão”, Edjane Duarte da Cunha, viúva de Cleriston Pereira da Cunha, interrompeu a sessão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados na quarta-feira, 11. O grito de protesto, atropelado pela voz que embargou quando os olhos se encheram de lágrimas, era uma resposta à manobra armada por partidos de esquerda para adiar a votação do projeto de lei que concede anistia aos presos pelo tumulto do dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília. Mais de 1,6 mil pessoas foram denunciadas por crimes diversos, e 227 foram condenadas a penas que chegam a 17 anos de cadeia. Se o projeto for aprovado pelo Congresso Nacional, os presos poderão voltar para casa — ou retirar a tornozeleira eletrônica. 

Já “Clezão” morreu em novembro do ano passado, aos 46 anos, depois de um infarto fulminante no pátio do presídio da Papuda. Ele não vai voltar para casa, como disse a viúva aos deputados. Edjane Duarte foi com sua filha, Késsia, de 23 anos, à Câmara nesta semana depois de ter enterrado o marido, sem tempo de se despedir — porque o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), não atendeu à recomendação da Procuradoria-Geral da República para tirá-lo da cela por motivos de saúde. “Mais famílias estão morrendo e sofrendo o que estou sofrendo”, afirmou. A fala emocionada ocorreu quando o deputado pernambucano Túlio Gadêlha (Rede) vociferava contra a ameaça que o “golpe do 8 de janeiro” representou ao país. \

O parlamentar faz parte da nova safra da esquerda “progressista” e ficou famoso por namorar a apresentadora Fátima Bernardes, da TV Globo. A cartilha parece decorada: “Essas pessoas foram presas por tentativa de golpe de Estado!”. Alguns políticos que fazem parte da comissão, mesmo os da velha guarda da esquerda, como Chico Alencar (Psol-RJ), Patrus Ananias (PT-MG), José Guimarães (PT-CE), irmão de José Genoino, e o ex-cara-pintada Lindbergh Farias (PT-RJ), têm o hábito de cerrar o punho e gritar “Sem anistia!” nos microfones, e Túlio Gadêlha se sentiu encorajado. A viúva, então, apontou o dedo para o deputado: “A culpa é sua, é da esquerda! Meu esposo hoje não volta, e vocês estão aí com uma narrativa de golpe que não existe. Sempre vou lutar pelo Clezão, até porque não desejo que o senhor, deputado, sinta a dor que estou passando”. A comissão, comandada por Caroline de Toni (PL-SC), foi paralisada.

O projeto da anistia ficou para depois das eleições municipais, porque os deputados estão empenhados em eleger aliados nos seus redutos no dia 6 de outubro — só 103 municípios podem ter segundo turno. Por isso, as sessões andam escassas desde agosto por falta de quórum. Mas a anistia já é tratada como uma realidade nos corredores da Câmara. Nesta semana, o ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais) disse que o governo vai tentar impedir que os presos do 8 de janeiro sejam perdoados. Há dois problemas nessa ameaça: o primeiro é que Padilha não é recebido sequer para um café com a bancada do PT, e já foi chamado de “incompetente” publicamente pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). 

O segundo diagnóstico é aritmético: o bloco de partidos de esquerda, liderado pelo PT com a ajuda de siglas satélites, não tem maioria para barrar o projeto nem na CCJ, a porta de entrada, nem no plenário. Na ponta do lápis, a esquerda tem 108 votos, podendo chegar a 130 com o socorro dos instáveis PDT e PSB. 

“É lamentável que uma questão humanitária, de direitos humanos, seja utilizada como negócio. É claro que a gente já esperava que a esquerda atacasse, mas entristece ver muitos parlamentares sem coração. E também parlamentares de centro, que não defendem nada. Há quanto tempo essas pessoas estão presas injustamente? Um dia preso injustamente é um absurdo e, graças a isso, as pessoas já não acreditam mais na Justiça no Brasil.” (Júlia Zanatta, PL-SC) Da comissão, o destino final será o plenário. Se for pautaddo num dia de Casa cheia, a aprovação é garantida, porque não é necessário o chamado quórum qualificado — três quintos dos deputados, no caso de emenda constitucional. Isso significa que a carta ficará nas mãos de Arthur Lira. 

Ele é a favor ou contra a anistia? Ninguém sabe, mas isso tampouco importa. Lira nunca se preocupou com nenhum tema que não fossem as emendas parlamentares, ou seja, manter a fatia mais graúda do Orçamento bem vigiada. Ocorre que, conforme os deputados têm dito abertamente em entrevistas, ele trata o tema da anistia como bandeira da oposição, sobretudo do PL e de parlamentares do centrão que vão usá-la na campanha à reeleição em 2026. 

Neste momento, a preocupação de Lira é eleger o seu sucessor na presidência da Casa em fevereiro para não perder protagonismo. Ele também terá um duelo difícil com seu arquirrival Renan Calheiros (MDB) em Alagoas. Como o senador é contra a anistia, é possível prever que Lira estará do lado oposto do tabuleiro. No microcosmo da Câmara, que parece só interessar para quem vive nele, o que isso significa? Eis a matemática de Arthur Lira: o PL tem a maior bancada da Câmara, atualmente com 92 cadeiras. Os outros dois grandes blocos partidários, uma sopa de letras com diversas legendas, reúnem três candidatos à sucessão: Hugo Motta (Republicanos-RJ), Elmar Nascimento (UB-BA) e Antônio Britto (PSDBA). Quantos votos esses blocos detêm? Somados, são 308 deputados.

É mais do que suficiente para ganhar qualquer eleição no primeiro turno. Haverá acordo para ter disputa? Provavelmente, sim, porque na reta final tudo se resolve nas miudezas da Câmara: um cargo de direção ali, um gabinete melhor com banheiro exclusivo para o deputado que anda chateado, um ar-condicionado novo etc

O nome favorito de Lira é Hugo Motta, do Republicanos — que faz parte de um dos blocos citados acima. Político profissional desde os 21 anos, hoje tem 34 anos e já está no quarto mandato. Se eleito, será o mais jovem a comandar a Casa. É formado em medicina, mas segue a carreira da família: o pai é prefeito de Patos, cidade do semiárido da Paraíba com 100 mil habitantes. Os avós também foram deputados, tanto no Estado quanto em Brasília. Quem conhece a cidade afirma que parece aqueles casos de novela, quando duas famílias do Nordeste casam os filhos, toda a linhagem vive da política, e eles governam a cidade por décadas. Lira negocia colocar o projeto de lei da anistia para votação se tiver a garantia de que o PL e esses blocos votarão em peso no seu candidato. Tudo indica que vai conseguir. Também interessa a ele empurrar essa pauta até o final do ano, para assegurar que ninguém mude de ideia na última hora. 

O projeto que avança na Câmara leva o número 2.858, de autoria do ex-deputado Major Vitor Hugo (PL-GO). O texto é anterior ao 8 de janeiro e foi usado como base, mas o parecer que será votado é uma colcha de retalhos. O perdão deve ser estendido até a data das eleições de 2022 e prevê a anulação de multas aplicadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como a de R$ 22 milhões ao PL. O relator é Rodrigo Valadares (UB-SE). Ele reclamou abertamente do uso da anistia para a escolha do novo presidente da Casa: “Estão utilizando a vida de seres humanos como moeda de troca”, disse.

Impeachment de Moraes Se no Congresso a anistia se tornou a pauta número 1, o assunto da vez no Senado é o pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, protocolado na segunda-feira, 9. Foram anexadas as assinaturas de 1,4 milhão de brasileiros. Um grupo de 152 deputados encampa a proposta, mas o número que interessa é o de senadores. Segundo o site Votos Senadores, o placar atual é de 36 a favor do impeachment, 29 indecisos e 16 contrários. O site exibe os nomes de todos eles e como o eleitor pode acioná-los pelas redes sociais, e-mail ou telefone. 

A decisão sobre a abertura do processo cabe ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que jamais deu sinal de que fará isso, a exemplo do que fez com outros 23 pedidos similares. Pelo contrário, nesta semana ele pediu “prudência”, dias depois de o país assistir à enorme manifestação que cobriu a Avenida Paulista no 7 de Setembro. “É muito importante que o Senado analise isso. Não temos clima para outras matérias. A sociedade cobra, e essa resposta tem que ser dada à população. Chegamos no fundo do poço”, afirmou Eduardo Girão (Novo-CE), um dos signatários do documento contra Moraes. 

Alguns juristas afirmam que há uma brecha na Lei nº 1.079, de 1950, a “Lei do Impeachment“, para que a Mesa Diretora delibere sobre o caso. Argumentam que o artigo 44 da lei prevê o recebimento da denúncia “pela Mesa do Senado”. Em seguida, caberia ao plenário aceitar ou não a denúncia, por maioria simples — ou seja, 41 senadores a favor. O tema, contudo, é complexo: seja pelo ineditismo, seja porque a própria legislação começou a ser escrita a partir da Constituição de 1946 e acabou adaptada depois a uma nova Carta — logo, não há referência constitucional clara. 

O entendimento que prevalece em Brasília é o que prevê os Regimentos do Senado e da Câmara. Quem deu a largada a dois processos de impeachment contra presidentes da República — Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff — foram os presidentes da Câmara. Quem pode fazer o mesmo com um ministro do STF é o presidente do Senado. A sociedade brasileira não está à vontade com o cerceamento de liberdades constitucionais — estas, sim, muito bem redigidas à letra da lei — nem com a censura ou a permanência dos inquéritos ilegais conduzidos por Alexandre de Moraes O assunto foi debatido pelo próprio Senado em setembro do ano passado com uma dezena de juristas. Na época, o senador Esperidião disse. “Em 2021, foram arquivados 32 pedidos de impeachment sobre juízes, e nenhum deles foi apreciado pelo plenário. É uma discrepância.” 

O fato é que o recado das ruas no 7 de Setembro foi claro: o tempo do lado de fora do Congresso Nacional parece correr mais rápido. A sociedade brasileira não está à vontade com o cerceamento de liberdades constitucionais — estas, sim, muito bem redigidas à letra da lei — nem com a censura ou a permanência dos inquéritos ilegais conduzidos por Alexandre de Moraes. Mais rápido ainda corre o relógio de quem está preso injustamente depois do 8 de janeiro, à espera de anistia.


Ruth Moraes e Sílvio Navarro, Gazeta do Povo