sexta-feira, 27 de novembro de 2020

"O gênio e o mito", por Rodrigo Constantino

Maradona não deveria ser uma referência moral para ninguém. Mas é um equívoco não homenageá-lo por seu futebol-arte


Ambas as posturas parecem inadequadas, e em parte são fruto da era das redes sociais, que alimentaram a polarização e transformaram tudo em torcida de futebol. No caso do futebol propriamente dito, Maradona deixou um legado inquestionável, por mais que surjam debates legítimos sobre quem era o melhor entre ele, Pelé, Zico e Messi. Em que pese a dúvida sincera, o fato é que todos foram extremamente habilidosos com a bola e trouxeram muitas alegrias para os apaixonados pelo esporte.

É triste, portanto, quando as pessoas perdem a capacidade de separar as coisas. E esse é justamente o tema desta coluna. Quando alguém despreza o gênio dos campos por conta do mito político, está fazendo uma confusão indevida e equivocada. O mesmo vale, naturalmente, para quem faz o contrário: utiliza a genialidade nos campos para criar um ícone político, como se o talento de Maradona com a bola tivesse qualquer elo com sua capacidade de compreender o mundo político.

No livro A Sociedade Que Não Quer Crescer, o psicólogo argentino Sergio Sinay disseca os perigos do fenômeno que podemos observar facilmente no Brasil também: adultos que se negam a ser adultos. São os “adultescentes”, presos no imediatismo e incapazes de sacrifícios morais para garantir um futuro melhor. E ele usa como exemplo justamente o ídolo do futebol de seu país para criticar a escolha de maus exemplos como referência moral.

Maturidade exige renúncia, sacrifício, responsabilidade e compromisso. Tudo aquilo de que muitos adultos modernos fogem como o diabo foge da cruz. Talvez para aplacar sua angústia existencial, esses adultos desejam permanecer jovens para sempre, e agem como tais. São colegas de seus filhos, e delegam a responsabilidade de educá-los a terceiros. Confundem seus caprichos com direitos. Nas palavras do autor:

“Uma sociedade empenhada em permanecer adolescente vive no imediatismo, na fugacidade, nas rebeliões arbitrárias que a nada conduzem, na confrontação com as regras — com qualquer regra, pelo simples fato de existirem —, no risco absurdo e inconsciente, na fuga das responsabilidades, na ilusão de ideais tão imprevistos como insustentáveis, na absurda luta contra as leis da realidade que obstruem seus desejos volúveis e ilusórios, na rejeição ao compromisso e ao esforço fecundo, na busca do prazer imediato, ainda que se tenha que chegar a ele por meio de atalhos, na confusão intelectual, na criação e adoração de ídolos vaidosos colocados sobre pedestais sem alicerces”.


Temos o hábito de canonizar os mortos, em especial aqueles associados à esquerda radical


Impossível não pensar em Maduro, Morales, Corrêa, Kirchner e Lula, ou seja, na patota populista do Foro de SP. Ou ainda nos artistas e atletas famosos que levam uma vida altamente questionável do ponto de vista ético, mas ainda assim viram heróis nacionais, referências morais. Eis onde entra Maradona na análise:

“Uma sociedade é adolescente quando carece de critérios para distinguir entre as habilidades futebolísticas de seu maior ídolo esportivo, Diego Maradona, e suas condutas irresponsáveis, sua ética duvidosa, seus valores acomodatícios; quando acredita que aquelas habilidades justificam tais ‘desvalores’ e quando, assim como um adolescente, os vê como um tributo invejável”.

Essa incapacidade de separar as coisas é típico sintoma de infantilismo. Maradona foi um dos maiores jogadores de todos os tempos, ponto. Mas isso nada diz sobre o restante. Sabemos que levou uma vida trágica, por conta do vício em drogas, de escolhas morais condenáveis, assim como podemos — e devemos — criticar suas “amizades polêmicas”. Ele usou a fama para fazer propaganda para ditadores assassinos.

Não podemos ridicularizar nossos “hermanos” nesse ponto. Basta pensar em nossos próprios heróis com pés de barro. Para sair do futebol, que tal Oscar Niemeyer? Os brasileiros não conseguem separar seu talento artístico do restante, e criaram a imagem de um grande humanista abnegado. Um humanista dos mais peculiares, já que adorava o maior assassino de todos os tempos: Joseph Stalin.

Temos o hábito de canonizar os mortos, em especial aqueles associados à esquerda radical. Mesmo em vida há esse esforço por parte da imprensa, com seu viés “progressista” quase hegemônico. E como traço predominante vemos essa mania de confundir talento numa área artística, esportiva ou da ciência com sabedoria ou referência moral.

Mas a simples constatação de que não se pode ser um grande humanista e um defensor de Stalin ou Fidel Castro ao mesmo tempo incomoda aqueles que querem usar a fama desses ícones para propagar sua ideologia. O colunista Zuenir Ventura reagiu assim quando criticaram esse lado de Niemeyer à época de sua morte: “Algumas críticas ideológicas a Oscar Niemeyer depois de morto revelam, de tão iradas, que no Brasil foi fácil acabar com o comunismo. O difícil é acabar com o anticomunismo”.

Quem dera o comunismo tivesse mesmo acabado no Brasil. Mas resta perguntar: devemos acabar com a oposição a essa utopia que trucidou centenas de milhões de inocentes? Ainda mais quando ela ainda serve de manto para ocultar o aspecto sombrio de seres humanos sem nenhuma empatia pelo próximo?

Não é exclusividade dos latino-americanos o uso dos famosos como instrumento de propaganda ideológica. Noam Chomsky é um importante linguista, apesar de suas teorias merecerem duras críticas hoje. Mas ele não virou um guru da esquerda por suas teses linguísticas, e sim por ser um antiamericano radical, que cospe no capitalismo que o enriqueceu. Temos vários casos similares: o público confunde a habilidade específica em certa área com uma autoridade para assuntos políticos, o que não faz sentido algum.

O comunismo foi o sonho adolescente que pariu o pesadelo real de milhões de pessoas. Combatê-lo é um dever moral de todo verdadeiro humanista. Hoje ele se adaptou, mudou, mas ainda sobrevive como “socialismo bolivariano”, “socialismo do século 21” ou mesmo “progressismo radical”. E conta com seus “garotos-propaganda”, aqueles que fizeram fama e fortuna com seus talentos específicos e transformaram isso em máquina de difusão ideológica.

Jesus foi claro quando disse para darmos a César o que é de César. Ele falava da divisão entre Estado e fé religiosa. Mas podemos aplicar a mesma lógica aqui. Podemos reconhecer o futebol-arte de Maradona — mesmo com direito a gol irregular de mão — e rejeitar o “pensador” político. Maradona não deveria ser uma referência moral para ninguém. Mas é um erro jogar tudo no lixo, como fazem aqueles que se recusam a escutar músicas de compositores comunistas, por exemplo, ou ver filmes com atores talentosos que defendem o Psol. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, bem diferente…

De Rodrigo Constantino, leia também “A defesa das virtudes vitorianas” e “Os intelectuais e a sociedade”


Revista Oeste