segunda-feira, 2 de novembro de 2020

"De 1994 até hoje, não foram os preços que subiram; foi a moeda que caiu — e isso é fácil de provar", por Anthony P. Geller

 Impressionantemente, as coisas nunca estiveram tão baratas

A característica mais sensacional de uma economia de mercado é que os preços dos bens e serviços caem ao longo do tempo.

E isso vale inclusive para nós, brasileiros.

Sim: hoje, os preços de tudo estão mais baixos do que estavam em julho de 1994, quando surgiu o real (como irei provar mais abaixo).

Infelizmente, essa queda de preços é ocultada pelo fato de não utilizarmos dinheiro real.

Dinheiro versus moeda corrente

Dinheiro real é qualquer moeda que tenha todas as três características a seguir: é meio de troca, é uma unidade de conta e é uma reserva de valor.

Essa é a definição clássica de dinheiro em todos os manuais de macroeconomia. E está correta.

Ou seja, além de ser usado para transações diárias e além de ter preços estabelecidos em sua unidade, o dinheiro também tem de guardar seu valor ao longo do tempo. Se, no entanto, ele perde poder de compra ao longo do tempo, então não é dinheiro real, pois não é reserva de valor.

Se não é dinheiro real, então é apenas moeda corrente. E tudo que é corrente, como o próprio nome diz, é apenas passageiro, e não vai durar.

Vários itens já foram utilizados ao longo da história como moeda corrente: tabaco, açúcar, sal, gado, pregos, cobre, grãos, rosários, chá, conchas, anzóis e, é claro, papel pintado.

Cada um à sua época, todos estes produtos foram meios de troca e unidade de conta. As pessoas precificavam as coisas em unidades destes bens e então transacionavam usando estes itens como meio de troca. 

Mas nenhum deles era dinheiro real, pois nenhum era reserva de valor — qualquer pessoa que houvesse acumulado conchas ou anzóis visando a se aposentar teria ficado pobre.

Hoje, a nossa moeda corrente é o real. Trata-se de uma moeda estatal, de curso forçado (ou seja, todos são obrigados a aceitá-la; recusar-se é crime) e fiduciária (o valor depende apenas da confiança que as pessoas lhe atribuem). Ela é utilizada como meio de troca e unidade de conta. Compramos e vendemos em reais, precificamos em reais e calculamos orçamentos, custos, lucros e prejuízos em reais.

Mas nossa moeda não é reserva de valor. Se fosse, teria ao menos mantido o mesmo poder de compra que tinha quando surgiu em julho de 1994, quando o arroz custava R$ 0,64 o quilo, o pão francês, R$ 0,09 a unidade, e o filé mignon, R$ 6,80 o quilo (veja outros valores da época aqui).

Pode não parecer, mas, na prática, o real em nada se diferencia das conchas e dos anzóis utilizados no passado. E terá o mesmo destino. Pode até demorar, mas vai acontecer.

Dinheiro real versus dinheiro fake

O fato de utilizarmos como meio de troca e unidade de conta uma moeda que não é uma reserva de valor ofusca o fato de que tudo hoje está mais barato do que estava em 1994.

Com efeito, a afirmação de que hoje as coisas estão mais baratas do que estavam em 1994 nem deveria surpreender, pois é algo lógico e direto: houve um grande aumento da oferta de bens e serviços nestes últimos 26 anos.

Hoje, há muito mais restaurantes a quilo, há muitos mais lojas disputando clientes, e há muito mais variedade e quantidade de roupas, carros e de itens domésticos à venda. Há muito mais empreendedores e produtores hoje do que havia em 1994. Há, em suma, muito mais produtos e serviços sendo ofertados. No Brasil e ao redor do mundo.

Isso não é apenas uma questão econômica, como também demográfica.

Sim, há também mais consumidores e demandantes. Mas, ora, dado que só é possível demandar quem antes produziu (você só tem renda para consumir se antes houver trabalhado e produzido), então, no mínimo, esse aumento da demanda or bens e serviços foi equilibrado pelo aumento da oferta de bens e serviços, de modo que os preços deveriam, no máximo, estar iguais.

No entanto, os preços em reais dispararam. Normal. O real não é dinheiro real (sem trocadilhos). É apenas uma moeda corrente estatal e que é monopólio do governo. Sendo um monopólio do governo, não é de se espantar que a qualidade desta moeda se degrade ao longo do tempo.

No entanto, se mensurarmos a evolução dos preços utilizando dinheiro de verdade, veremos que, mesmo vivendo em uma economia pouco livre e muito regulada, ainda assim, graças ao incrível aumento na produção — característica intrínseca ao capitalismo —, os preços caíram.

Nós não conseguimos perceber esta queda simplesmente porque utilizamos um dinheiro fake, para recorrer a um termo da moda. Se trocarmos o dinheiro fake pelo dinheiro real, iremos constatar que tudo está mais barato.

E qual é o dinheiro real? Quem acompanha este Instituto há mais tempo sabe que o dinheiro real é e sempre foi o ouro

Ao longo da história, o que inclui o período anterior a Cristo, o ouro sempre foi a mercadoria naturalmente escolhida para servir como meio de troca, unidade de conta e reserva de valor. Sua tradicional estabilidade como unidade de conta fez dele uma escolha natural para definir aquilo que hoje conhecemos como dinheiro (os motivos foram detalhadamente explicados aqui, e não será necessário repeti-los).

Embora hoje já não seja mais utilizado como meio de troca — simplesmente porque os governos monopolizaram esta atividade, e baniram toda a concorrência —, o ouro manteve impecavelmente sua característica de reserva de valor.

Por isso, a maneira correta de mensurar a evolução dos preços reais das coisas é acompanhar a variação dos seus preços em dinheiro real, pois apenas o dinheiro real é reserva de valor. Mensurar a evolução dos preços em uma moeda fake apenas obscurece a realidade.

E como variaram os preços?

Tudo barateou 

Indo direto ao ponto, e começando com um item bem popular, vejamos a variação do preço do arroz.

O gráfico abaixo mostra a evolução do preço, em reais, de 100 quilogramas de arroz no mercado de commodities — ou seja, é o preço cobrado pelo produtor rural (a série disponível começa no fim de 1999): 

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Gráfico 1: evolução do preço de 100 quilogramas de arroz, em reais, no mercado de commodities

Já o gráfico abaixo mostra a evolução do preço destes mesmos 100 quilogramas de arroz em gramas de ouro: 

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Gráfico 2: evolução do preço de 100 quilogramas de arroz, em gramas de ouro, no mercado de commodities

O contraste não poderia ser mais gritante. Em reais, o arroz encareceu de R$ 10 para R$ 71 neste período de 21 anos. Um aumento de 610%.

Já em ouro, o arroz barateou. E muito. Ao passo que você precisava de 0,69 grama de ouro para comprar 100 quilos de arroz no início do ano 2000, hoje você precisa de apenas 0,21 grama de ouro para comprar os mesmos 100 quilos de arroz. Trata-se de uma queda de quase 70%.

Vamos para o próximo.

O gráfico a seguir mostra a evolução do preço, em reais, de um galão de gasolina no mercado de commodities. É exatamente este valor que a Petrobras utiliza para precificar a gasolina que vende em suas refinarias: 

gasolina reais.png

Gráfico 3: evolução do preço, em reais, de um galão de gasolina no mercado internacional de commodities

Já o gráfico abaixo mostra a evolução do preço deste mesmo galão de gasolina em gramas de ouro: 

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Gráfico 4: evolução do preço, em gramas de ouro, de um galão de gasolina no mercado internacional de commodities

De novo, o contraste impressiona: ao passo que o galão de gasolina saltou de R$ 0,50 em julho de 1994 para R$ 5,90 em outubro de 2020 (aumento de impressionantes 1.080%), neste mesmo período, em ouro, o galão de gasolina barateou de 0,045 grama para 0,017 grama (queda de 62%).

Continuemos.

O próximo gráfico mostra a evolução do preço, em reais, de um bushel de soja no mercado de commodities. Trata-se de uma mercadoria cujo preço recentemente virou motivo de preocupação para o governo

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Gráfico 5: evolução do preço, em reais, de um bushel de soja

Agora, vejamos evolução do preço deste mesmo bushel de soja em gramas de ouro: 

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Gráfico 6: evolução do preço, em gramas de ouro, de um bushel de soja

A mesma história: encarecimento contínuo em reais; barateamento contínuo em ouro.

Em julho de 1994, você precisava de R$ 400 para comprar um bushel de soja. Hoje, você precisa de R$ 6.080. Um encarecimento de 1.420%.

Neste mesmo período, o preço do bushel de soja caiu de 56 gramas de ouro para 17,4 gramas. Um barateamento de 69%.

Como anedota, se servir de consolo para o governo, ele pode ao menos dizer que a soja realmente encareceu nos últimos meses (repare no pequeno "v" no gráfico do ouro). Só que ela apenas retornou aos valores de janeiro de 2020 — em dinheiro de verdade.

Agora, vamos para a carne.

O gráfico abaixo mostra a evolução do preço da arroba do boi gordo na B3 (a série disponível começa em janeiro de 2001). O preço da nossa picanha é formado aí: 

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Gráfico 7: evolução do preço da arroba do Boi Gordo, em reais, na B3.

Agora, eis a evolução do preço desta mesma arroba de boi gordo em gramas de ouro: 

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Gráfico 8: evolução do preço da arroba do Boi Gordo, em gramas de ouro, na B3.

Em janeiro de 2001, eram necessários R$ 40 para comprar uma arroba de boi gordo. Hoje não sai por menos de R$ 273. Encarecimento de 582%.

Por outro lado, ao passo que você precisaria de 2,40 gramas de ouro para comprar uma arroba de boi gordo em janeiro de 2001, hoje você precisa de apenas 0,80 grama de ouro. Barateamento de 67%.

Também como anedota, repare que os preços da carne, em dinheiro de verdade, realmente subiram muito ao fim de 2019, como todos sentimos. Mas foi um fenômeno pontual. Hoje, em dinheiro de verdade, já está bem mais barato. Quase nas mínimas históricas.

O próximo é o milho.

O gráfico abaixo (a séria disponível começa ao fim de 2009) mostra a evolução do preço da saca de milho na B3. Por ser a ração de suínos e frangos, seu preço impacta diretamente nos custos de produção destes itens: 

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Gráfico 9: evolução do preço, em reais, de uma saca de milho na B3

Agora, e evolução do preço desta mesma saca de milho em gramas de ouro:

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Gráfico 10: evolução do preço, em gramas de ouro, de uma saca de milho na B3

O milho, curiosamente, é o único item que, em ouro, não está próximo de suas mínimas históricas. Ele já esteve mais barato em outros anos, o que comprova que, hoje, ele realmente pode ser considerado caro. 

Mesmo quem não é do ramo agrícola, mas entende o básico de economia, sabe que tal fenômeno certamente se deve a algum problema atual de safra ou à perspectiva de um problema futuro de safra. Uma rápida pesquisa na internet comprova isso.

Em todo caso, em dinheiro real, o milho está mais barato hoje do que estava em 2009. E muito mais caro em dinheiro fake.

Ao fim de 2009, eram necessários R$ 20 para comprar uma saca de milho. Hoje, são necessários R$ 83. Um aumento de 315%.

Neste mesmo período, o milho barateou de 0,36 grama de ouro para 0,24 grama. Uma queda de 33%.

Finalmente, vejamos agora os preços gerais da economia brasileira.

O gráfico abaixo mostra a evolução do índice de preços gerais ao consumidor. Na prática, o gráfico mostra quantos reais são necessário para comprar uma cesta contendo uma fatia de todos os bens de consumo pesquisados pelo IBGE para calcular a evolução do IPCA. 

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Gráfico 11: evolução do índice de preços ao consumidor na economia brasileira; ou, quantos reais custa uma cesta contendo uma fatia de todos os bens de consumo computados pelo IBGE

Já o gráfico abaixo mostra a evolução do preço desta mesma cesta, em gramas de ouro:

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Gráfico 12: evolução do índice de preços ao consumidor, em gramas de ouro: ou, quantos gramas de ouro custa uma cesta contendo uma fatia de todos os bens de consumo computados pelo IBGE

Como gran finale, e como foi prometido, perceba que os preços de todos os bens de consumo caíram no Brasil — quando precificados em dinheiro de verdade.

Ao passo que, mensurado em dinheiro fake, tudo hoje está mais caro, a realidade é que, mensurado em dinheiro real, tudo está mais barato.

Utilizando o dinheiro fake, eram necessários R$ 21, em julho de 1994, para comprar uma cesta contendo uma fatia de todos os bens de consumo da economia. Hoje, são necessários R$ 132. Encarecimento de 529% — que é exatamente o IPCA acumulado no período.

Porém, utilizando dinheiro de verdade, precisaríamos de 2,4 gramas de ouro para comprar essa cesta em julho de 1994. Hoje, precisamos de apenas 0,4 grama. Uma deflação de preços de impressionantes 83%.

Ou seja, nossa economia, quando precificada em dinheiro de verdade é deflacionária. Ou seja, ela é saudável e funciona bem.

Para concluir

A economia de mercado e o capitalismo são inerentemente deflacionários. Quanto mais se produz, maior a oferta, maior a necessidade de vender (para se obter renda), maior a disputa por consumidores, maiores os descontos.

Aquilo que sempre foi explicado pela teoria foi agora comprovado na prática, com dados e fatos.

Com efeito, tal "descoberta" nem deveria ser impactante, pois,  quando o mundo estava sob o padrão-ouro clássico, os preços caíam anualmente. Foi apenas quando passamos a utilizar moeda estatal (dinheiro fake), que essa percepção de queda nos preços foi extinta.

Vale enfatizar: os preços continuaram caindo normalmente e continuam caindo até hoje. Nós é que paramos de perceber (e de sentir) porque trocamos o "mensurador". Trocamos a unidade de conta. Em vez de dinheiro de verdade, que possui reserva de valor, passamos a utilizar dinheiro fake, que perde valor com o tempo.

Em vez de um dinheiro de oferta controlada pelo mercado, passamos a utilizar uma moeda estatal completamente sob o controle de políticos e burocratas, que fazem com ele o que querem. 

Por fim, atente-se para o seguinte: esse fenômeno da contínua desvalorização da moeda gerou um agigantamento do setor financeiro — pois as pessoas, afinal, têm de adotar alguma medida para proteger o poder de compra da sua poupança —, criando justamente aquilo que os críticos do capitalismo chamam de "financeirização" da economia, arranjo em que os mercados financeiros adquirem importância central, deixando o setor produtivo, que é quem genuinamente gera riqueza, em segundo plano. 

Se o dinheiro fosse o ouro, o papel proeminente hoje ocupado pelo mercado financeiro seria muito menor. Os críticos do "financismo" estão xingando a consequência e ignorando totalmente a causa — que é o uso da moeda estatal fiduciária. 

Quanto a você: não deixe o seu padrão de vida e o da sua família a mercê desta farsa. Proteja-se utilizando dinheiro de verdade.


Anthony P. Geller
é formado em economia pela Universidade de Illinois, possui mestrado pela Columbia University em Nova York e é Chartered Financial Analyst credenciado pelo CFA Institute.


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