domingo, 1 de novembro de 2020

"Connery é intocável para além de 007", por Rodrigo Fonseca

 

Sean Connery em “Até Os Deuses Erram”


Embora em sua morte a figura de James Bond e seu oscarizado desempenho como Malone em “Os Intocáveis” (1987) tenham sido mais lembrado do que tudo o que fez ao longo de 58 anos de carreira, o escocês de Edimburgo Thomas Sean Connery (1930-2020) garimpou pepitas de inestimável valor na escavação que fez das representações do masculino, tendo vivido seu apogeu como intérprete em sua parceria com o cultuado Sidney Lumet (1924-2011). 

“Até os Deuses Erram” (“The Offense”, 1973), sobre a brutalidade desmedida de um policial em dias de burnout, baseada em peça teatral de John Hopkins, é o ponto alto desse casamento entre os dois talentos. 

Antes, em 1971, veio “O Golpe de John Anderson” (“The Anderson Tapes”), que fez escola entre os filmes de assalto. E, em 1965, “The Hill”, drama de guerra traduzido por cá como “A Colina dos Homens Perdidos”, desmitificou de uma vez por todas a ideia de que Connery seria apenas o símbolo sexual do desbunde contracultural. 

P de Pop teve a honra de entrevistar Lumet, por telefone, durante 45 minutos, em 2006, quando ele disse: “Sean Connery foi o meu Brando. E olha que filmei com o próprio Marlon, em ‘Vidas em Fuga’. 

Mas ninguém deu a mim a disciplina e a paixão que só Sean oferecia. Vivi isso com Pacino, anos depois. Mas era mais uma questão de juventude, e da inquietude dos anos 1970. 

Com Sean, era questão de prática, sem método”, disse o cineasta.

Na seara “Sessão da Tarde”, Connery merece respeito ainda por “A Lenda dos Anões Mágicos” (“Darby O’Gill and the Little People”, 1959), exibido pela última vez por aqui em 1992, na Globo. 

Dos trabalhos mais recentes, há “Armadilha” (“Entrapment”, 1999), que ensaiou ser blockbuster com seu timming de ação memorável. 

Num par romântico preciso com Catherine Zeta-Jones (que falta essa excepcional atriz tem feito, depois que decidiu desacelerar), Sean dispôs da voz de Francisco Milani na dublagem do filme no Brasil. 

E vale um lugar acalorado no coração o banho pop que ele deu nas telas em 1996, ao lado de um Nicolas Cage recém-oscarizado (por “Despedida em Las Vegas”) em “A Rocha” (“The Rock”), o melhor de Michael Bay na direção. Connery foi muito além da testosterona, do charme e da imagem do brucutu fleumático. 

É um ator cuja voz alevudada esculpiu heróis tridimensionais e emblemáticos da identidade escocesa, como bem se comenta em “Trainspotting” (1996), numa piada sobre ele ser o orgulho de sua nação. 

Com certeza, no planisfério cinéfilo, temos muito que nos orgulhar de tudo o que vivemos com ele.

E, agora, é importante que a morte dele seja um veio de olharmos para os nossos outros mitos idosos. Sugestão: Gene Hackman! Que tal celebrarmos sua glória em vida?

O Estado de São Paulo