sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Sílvio Navarro - 'Os patrões da República'

No próximo ano, o brasileiro terá a chance de renovar quase todos os quadros nas urnas e devolver a política para quem deve fazer política — quem tem voto


Alexandre de Moraes ao lado do presidente Lula, em registro que simboliza a sintonia entre STF e Planalto - Foto: Reprodução/X


H á pelo menos seis anos, o Brasil convive com a sensação incômoda, e inédita desde a redemocratização, de que não há qualquer lei, decisão ou ação política possível sem a autorização do Supremo Tribunal Federal (STF). E não se trata do aval constitucional, da legalidade, mas sim do que os ministros acham que pode ou não pode ser feito no País: são os patrões da nova República. 

Aos fatos: todos os dias, o País acorda com manchetes na imprensa sobre o que os ministros pensam de determinado tema, se autorizam um prefeito a administrar sua cidade como ele gostaria, se um deputado federal pode usar uma peruca na tribuna ou chamar o seu adversário político de “ladrão, corrupto e amigo de ditadores”. Mais: eles também fiscalizam o que o cidadão publica em suas redes sociais — e se a plataforma deve ser punida também. 

Dois exemplos ocorridos nos últimos dias sobre o tema da vez, a segurança pública, são patentes: o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, conduziu uma megaoperação para retirar líderes do Comando Vermelho das favelas da Penha e do Alemão, na zona norte da capital. Mais de 120 traficantes morreram. O que aconteceu no dia seguinte? O ministro Alexandre de Moraes, que se acostumou com o papel de “xerife” do Brasil — embora nenhum eleitor tenha feito essa escolha — pegou um avião e foi para o local. Moraes foi nomeado às pressas relator da ADPF das Favelas, redigida para limitar o trabalho da polícia nos morros. Cobrou informações do governador e não hesitou em abrir um inquérito, a cargo da Polícia Federal, para gerenciar a segurança no Estado. Detalhe: Moraes não conhece as particularidades do Rio nem os grupos criminosos que atuam no Estado, porque é paulista, e a PF se recusou a ajudar na operação quando foi solicitada.


Alexandre de Moraes virou peça central das disputas sobre segurança pública, confrontando a atuação do governo do Rio após megaoperação contra o Comando Vermelho - Foto: Gustavo Moreno/STF 


Outro exemplo na mesma área: a Câmara dos Deputados vive um acalorado debate sobre o endurecimento da legislação penal contra facções criminosas. É um tema visceral, que recolocou a direita no jogo político de 2026, com apoio avassalador da sociedade — nem os institutos de pesquisas a serviço do PT conseguiram disfarçar os dados porque o brasileiro está cansado da bandidagem. 

O projeto de lei, contudo, não andou porque o presidente da Casa, Hugo Motta, foi pedir o aval dos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes para colocá-lo em votação. Também pediu autorização para escalar o deputado Guilherme Derrite, secretário licenciado de Segurança de São Paulo, como relator. 

A frase anterior pode parecer absurda numa democracia constitucional, mas está correta: o presidente da Câmara, apelidada de “Casa do Povo”, foi prestar contas ao STF antes de uma votação. O resultado é um texto completamente desfigurado e que perdeu o foco: classificar organizações como PCC, CV e outras siglas como terroristas. Se houver esse avanço, o Brasil terá a chance real de cooperação internacional para vencer o narcotráfico. Nessa hora, o eleitor pode perguntar: mas a Constituição não é clara sobre a independência dos Poderes? O Congresso não tem autonomia, chancelada pelo voto popular? Esse mesmo eleitor já se acostumou com a resposta: não importa o que diz a Carta Magna, mas sim o que os ministros do STF querem.

É por isso que centenas de pais, mães, avós etc. estão presos a uma tornozeleira eletrônica ou ainda atrás das grades pela acusação de um golpe de Estado impossível. A Câmara estava pronta para aprovar o projeto da Anistia, nos moldes da Lei 6.683, de 1979. A oposição conseguiu reunir maioria para aprovar a urgência da votação. Mas Hugo Motta recuou para evitar encrenca com os ministros do STF.


O presidente da Câmara, apelidada de “Casa do Povo”, foi prestar contas ao STF antes de uma votação. 


Quantas vezes o brasileiro acompanhou a seguinte cena nos últimos anos: o Congresso aprova uma lei, às vezes até uma emenda constitucional, que requer quórum altíssimo e enorme costura política, e um ministro do STF, individualmente, anula tudo? Basta o líder do PT do turno encaminhar um ofício. Na maioria das vezes, o caso sequer passa pelo Ministério Público, que deveria ser o agente acusatório no ordenamento jurídico do País. 

Desde março de 2019, o STF mantém aberto o inquérito 4.781, que em Brasília ganhou uma série de apelidos, foi renomeado pelo próprio STF e ninguém mais sabe quem é investigado. Esse inquérito é o marco da ilegalidade e da deformação institucional do País. Foi aberto de ofício pelo então presidente da Corte, Dias Toffoli, sem a manifestação prévia do Ministério Público — ou seja, foi quando o STF decidiu que o Ministério Público não era mais necessário. Alexandre de Moraes foi nomeado relator sem o habitual sorteio. Deu no que deu. 


Dias Toffoli abriu de ofício o inquérito 4.781, que inaugurou a era das investigações sem controle externo | Foto: Ton Molina/Fotoarena/Estadão Conteúdo

O então decano do tribunal naquela época, Marco Aurélio Mello, narrou como foi informado dessa decisão em entrevista ao repórter Cristyan Costa, de Oeste. Mello disse ter ouvido de Toffoli: “Determinei, mediante portaria, a instauração de um inquérito e designei o relator. Sei que Vossa Excelência não vai concordar”. Os togados estavam na casa de Luís Roberto Barroso. Mello continuou: “A situação é tão delicada que a procuradora-geral da República da época, Raquel Dodge, pediu o arquivamento. O Ministério Público Federal, que deveria ter feito o pedido de abertura da investigação, solicitou o fim do procedimento, porém não foi atendido. Isso, evidentemente, não se coaduna com a organicidade do Direito.” 

As interferências, que muitas vezes travam o avanço do País, não pararam por aí. Os casos envolvem ferrovias, áreas indígenas, quilombolas e até o cotidiano do pagador de impostos. Segundo o banco de dados do STF, o primeiro semestre terminou com uma fila de quase 19 mil processos em tramitação. Mas será que todos eles precisam passar pela Corte? Do que tratam? Por exemplo: em 2023, Alexandre de Moraes resolveu “prefeitar”. Basta digitar em qualquer buscador na internet: “Alexandre de Moraes moradores de rua”. O resultado no Google diz: “O ministro proibiu em liminar que os Estados, o Distrito Federal e os municípios façam a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua às zeladorias urbanas e aos abrigos”. É papel de um ministro da última Corte recursal deliberar sobre o que 5.571 prefeitos podem fazer, num território que tem 8,5 milhões de quilômetros quadrados? Ele conhece a realidade de cada cidade? 


Mello continuou: “O Ministério Público Federal, que deveria ter feito o pedido de abertura da investigação, solicitou o fim do procedimento, porém não foi atendido”.


O gabinete de Moraes conduz mais de 20 inquéritos, segundo ele mesmo informou no começo do ano. Ele dá ordens frequentes para a Polícia Federal, o que deveria ser competência do Ministério da Justiça. Por meio da chamada Vaza Toga, descobriu-se que havia um gabinete clandestino no STF e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para perseguir quem não aderiu ao projeto de poder da Corte — políticos, influenciadores, jornalistas etc. Muitos foram punidos e quem denunciou as arbitrariedades, o perito Eduardo Tagliaferro, exfuncionário de Moraes, pode ir para a cadeia se for extraditado em dezembro da Itália. Um detalhe: todo esse projeto de poder passou pela reabilitação política de Lula da Silva, que estava preso, feita pelo STF. 

Lula ganhou as eleições de 2022 e promove encontros nos palácios de Brasília com o grupo que dá as cartas no Supremo. E tudo acontece às claras, com ar de normalidade e transmissão pela imprensa amiga. Cada um tem um papel: Toffoli continuou o serviço de Lewandowski para enterrar o que restava da Lava Jato; foi montada uma Turma que atua em bloco para condenar Jair Bolsonaro e seus aliados — Luiz Fux, juiz de carreira, percebeu e não topou. Formam essa Turma: Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Flávio Dino (ex-ministro de Lula) e Cristiano Zanin (ex-advogado de Lula). O petista ainda vai indicar mais um nome para completar o grupo depois da aposentadoria de Barroso. 


Lula fortaleceu alianças no STF, enquanto Toffoli assumiu o papel central de desmontar o legado da Lava Jato - Foto: Shutterstoc

Moraes e Dino determinaram que Jair Bolsonaro permaneça preso em casa e incomunicável, há mais de cem dias, sem condenação. É Moraes quem autoriza, nome a nome, quem pode visitar o ex-presidente — inclusive familiares. 

Os ministros do STF ainda protagonizam um paradoxo: a maioria gosta de convescotes com políticos e empresários. Gilmar Mendes, aliás, promove o maior lobby judiciário do mundo, apelidado de “Gilmarpalooza” pela mídia, sempre no exterior. As entrevistas e participações em eventos são semanais. Mas nenhum deles é visto em aeroportos ou num shopping center de Brasília, como era comum há menos de uma década. Os deslocamentos aéreos são feitos somente por meio de aeronaves oficiais da Força Aérea Brasileira (FAB), onde dividem assentos com ministros de Lula. 

O fato é que quem saiu do trilho constitucional foi o STF e só há um caminho para organizar a bagunça na Praça dos Três Poderes: as eleições do ano que vem. O Brasil está doente, mas existe remédio: um Congresso Nacional renovado e corajoso para recolocar cada Poder no seu devido lugar. E política deve ser feita por quem tem voto — e não caneta


Sílvio Navarro - Revista Oeste