sexta-feira, 31 de outubro de 2025

'É recebendo que se dá', por Eugênio Esser

 Nos anos 1980 e 1990, quando corruptos tinham medo da imprensa, e a imprensa lhes tinha asco, o debate sobre ética era levado a sério no Brasil


O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) | Foto: Taba Benedicto/Estadão Conteúdo


Sejam bem-vindos, cínicos do Brasil, à sigla que pode até não ser o maior partido do ocidente, mas é aquela que determina os caminhos, e principalmente os descaminhos, do país


D epois de décadas acompanhando o zigue-zague de políticos volúveis, penso que está na hora de redigir o estatuto de um novo partido que, embora não exista oficialmente, já é a maior agremiação partidária do Brasil pelo critério de número de adeptos. Sua sigla será PQm — assim mesmo, com um eme minúsculo ao final, um eme claramente envergonhado de sua existência, mas um eme muito real. Diria, inclusive, que na política brasileira não há nada mais real que este franzino eme a que me refiro.

Apresento-lhes, então, sem mais delongas, o PQm — Partido Queromeu. Se você lia jornais nos anos 1980 e degustava uma das coisas mais sérias que a imprensa brasileira publicava — quadrinhos de humor —, então já se apercebeu da origem deste nome. 

“Queromeu” é um personagem criado pelo cronista Luis Fernando Verissimo (1936-2025) no jornal gaúcho Zero Hora, e aparecia de vez em quando na tira “As cobras”. Na realidade, tinha nome e sobrenome. “Queromeu, o corrupião corrupto”. 

Era assim que “LFV” apresentava a versão satírica que criou de um pássaro que, acredite, existe mesmo. O corrupião é um bicho muito bonito. 

Bonito até demais, pelo nome que tem. O corrupião tem um peito cor-de-laranja que contrasta lindamente com o negro que envolve a cabeça e desce ao pescoço, dando a impressão de que veste um capuz preto. Sei que esta alusão a uma capa preta traz evocações sinistras nos dias que correm, mas o corrupião não abre a boca, digo, o bico, para ameaçar ou perseguir, e sim para cantar. 

Um canto muito apreciado, registre-se. Verissimo recorreu a “Queromeu, o corrupião corrupto” para introduzir um personagem melancolicamente realista nas reflexões por vezes idealistas, até ingênuas, das duas cobrinhas que ele criou para sua famosa série de tiras cômicas. Nos anos 1980 e 1990, quando corruptos tinham medo da imprensa, e a imprensa lhes tinha asco, o debate sobre ética era levado a sério no Brasil.


Tirinha com personagem “Queromeu, o corrupião corrupto” do cronista Luis Fernando Verissimo (1936-2025) - Ilustração: Reprodução/Redes Sociais

Em um episódio memorável, uma das cobras comenta com a outra: “Queromeu, o corrupião corrupto, parece despreocupado…” No quadrinho seguinte, Queromeu aparece em cena. É um pássaro empertigado, confiante, que traz na lapela (passarinho tem lapela?) um troço que brilha. Talvez um diamante, uma pedra preciosa — um “sinal exterior de riqueza”. A cobra falante resolve provocar o corrupião. 

— Estão dizendo que desta vez os corruptos vão para a cadeia, Queromeu… O corrupião se mantém imperturbável.

 — Temos fé no nosso santo padroeiro. 

— E quem é? — quis saber a cobra que até então se mantinha calada. 

— São Nunca! — responde o altivo corrupião de brilhante na lapela. Não sei quem será o fundador e presidente de honra (?!) do PQm. Há uma legião de pessoas habilitadas. Pense, você mesmo, em quantos você sabe que se encaixariam no perfil descrito por aquele samba magistral de Jorge Aragão, Dida e Neoci Dias: “Você pagou / com traição / a quem sempre lhe deu / a mão”. 

Como diria Michel Temer, aliás figura de relevo neste tema, “vir-lheão” inúmeros nomes, caros leitores. E o curioso é a brasilidade deste universo. O Partido Queromeu veste como luva em homens, mulheres, moços, velhos, gente de pele clara, de tez escura, de penteado convencional ou de cabelo colorido, brinquinho e piercing. 

O PQm acolhe a todos os tipos que demonstram vocação para pensar apenas em si mesmos. E dispõem de um eleitorado farto, porque milhões de brasileiros votam no primeiro que lhes alcança ou promete um benefício qualquer. São eleitores potenciais do Partido Queromeu.


Você pode dizer “calma lá” e argumentar que não é bem uma questão de caráter e sim de ignorância, chamando a atenção para a existência de um imenso contingente de brasileiros que nem sabe a diferença entre um prefeito e um vereador, ou que vota para presidente imaginando estar elegendo alguém do Judiciário — confusão que transpareceu em live da multimilionária cantora Anita, em 2020. 

Sim, o analfabetismo político, que acomete até gente que foi à escola ou que vive sem problemas econômicos, é parte do problema. Mas não tanto quanto a miserabilidade social, que salta aos olhos quando se percebe que mais de 50 milhões de brasileiros sobrevivem de Bolsa Família e estão à margem do mercado de trabalho formal. Não se deve generalizar, mas uma porção significativa destes dependentes da esmola oficial engrossou a taxa de alienação política que, em 2022, alcançou um patamar desolador. Mais de 32 milhões de brasileiros, uma Venezuela inteira, se abstiveram de votar no segundo turno da eleição que confrontou Bolsonaro e Lula. 

Dos eleitores, passemos agora aos eleitos pelo Partido Queromeu. São, de longe, a maior bancada do Congresso Nacional, e formam uma espécie de geleia, sem forma definida. Aderem ao governo dependendo do que recebem em troca. A grande imprensa os hostiliza e chama de Centrão — quando dão apoio a um governo conservador. Quando o vento vira e eles se oferecem para barganhar com um governo sedizente de esquerda, ganham rótulos adicionais e mais brandos: base do governo ou, até, “centro democrático”


Tirinha com personagem “Queromeu, o corrupião corrupto” do cronista Luis Fernando Verissimo (1936-2025) | Ilustração: Reprodução/Enem

Em setembro de 1993, em meio a uma Caravana do PT, Lula disse que a Câmara dos Deputados tinha pelo menos 300 picaretas. “E eles foram eleitos, não caíram lá de paraquedas.” A fala de Lula causou estupor — era o tempo em que o PT prometia não roubar e não deixar roubar. Inspirou inclusive uma música da banda Paralamas do Sucesso chamada “Luiz Inácio (300 Picaretas)”. 

Nunca ouviu falar desta música? Foi convenientemente esquecida, inclusive por seus criadores. Os versos da canção (“Luiz Inácio falou / Luiz Inácio avisou / são 300 picaretas / com anel de doutor”) se tornaram, com o passar do tempo, uma crítica ao próprio PT. Porque Lula chegou ao poder e decidiu que governaria comprando os picaretas que um dia denunciou. A estratégia, digna da admiração de Queromeu, o corrupião corrupto, foi desvendada com o escândalo do Mensalão (Ação Penal 470, Supremo Tribunal Federal).




Pior do que isso: hoje, no terceiro mandato de Lula, a compra de deputados e senadores, via liberação de emendas e loteamento de estatais, se institucionalizou. Já não gera canção de protesto e muito menos ação penal no Supremo Tribunal Federal pela singela razão de que, no Brasil de hoje, não há um governo, mas um regime. 

E, neste regime, todo poder emana do STF e em nome de Lula é exercido. Difícil até definir o que temos, se uma juristocracia presidencial, se um presidencialismo judicial. Só sabemos que o sistema de freios e contrapesos do Estado de Direito se esboroou e temos, hoje, uma juristocracia que põe governo e depõe oposição à revelia do sentimento popular e imune ao voto dos cidadãos. 

Você há de perguntar: onde, nesta geringonça de poder, entra o Partido Queromeu? Seria preciso um outro artigo para analisar a troca de benesses e nomeações entre o governo, o STF, o Ministério Público, as duas casas do Congresso Nacional, o Tribunal de Contas da União — órgão auxiliar do Poder Legislativo — e, ainda, instâncias privadas que se deixaram cooptar pelo “mecanismo brasileiro”. A saber, a chamada “grande imprensa” e entidades acumpliciadas com o regime, OAB à frente, seguida de perto por ONGs com financiamento internacional.

Em todas essas engrenagens, há adeptos, conscientes ou não, do Partido Queromeu. Todos merecedores de um reluzente broche do PQm, com a figura icônica do corrupião, mascote do partido de maior expressão na política e, dói dizer, na sociedade brasileira destes inglórios dias.

Eugênio Esser - Revista Oeste