O Brasil poderia estar neste jogo, depende de querer ser gente grande e não chegar devendo à mesa de negociação, como agora, quando tem de responder por perseguições políticas internas e apoio a ditaduras
N o auge da Guerra Fria, a crise dos mísseis em Cuba expôs o quão tensa era a divisão territorial do planeta entre Estados Unidos e União Soviética. Foram os 13 dias mais perigosos desde a Segunda Grande Guerra. A ameaça de os soviéticos romperem a bem demarcada área de influência dos norte-americanos a oeste do Atlântico, apesar da Cuba comunista de Fidel Castro, foi quando a humanidade chegou mais perto de uma tragédia nuclear. Desde que o mundo é mundo, cada metro de terreno conta para afirmar o poder de reinos e nações. A globalização e o mundo digital pareciam ter derrubado essas fronteiras. Mas debaixo da terra há o subterrâneo e riquezas ainda imensuráveis. Tudo conta para projetar autoridade. E estar à frente das altas tecnologias é apenas a evolução do que o ouro e o petróleo já representaram e ainda representam. Mas os recursos naturais não foram espalhados democraticamente pelo planeta. As terras raras, um conjunto de 17 elementos químicos que se transformou na corrida tecnológica do século 21, são mais um exemplo dessa desigualdade que gera disputa. Nem todo mundo tem, mas todo mundo precisa. E a lei econômica da demanda por algo raro e escasso eleva o nível do jogo do poder. Das reservas descobertas de “elementos de terras raras”, 98% estão concentradas em apenas oito países. A ONU, que poderia ser o resumo do mundo, tem 193 Estadosmembros.
Quando o tema são as REEs — sigla em inglês para as terras raras —, ter é poder. E conseguir refinar e processar os 17 elementos químicos do momento, bem mais que isso. É determinar o futuro do mundo pelo controle de insumos especiais que são indispensáveis para a produção de placas de energia solar, telas de smartphones, baterias de carros elétricos, turbinas, radares, drones, mísseis teleguiados e jatos militares, como o F-35, de fabricação americana e um sucesso internacional de vendas. Para entender o cenário geopolítico dessa disputa global, três países dividem o protagonismo: a China, que detém as maiores reservas e capacidade de refino, os Estados Unidos de Trump e sua política externa de recuperação de influência e, acredite, a pacata Holanda. O Brasil, que tem a segunda maior quantidade de terras raras em seu território e quase nenhuma capacidade de processamento, poderia ser o quarto. Mas o país ainda é só a promessa de uma reserva de poder. Até outro dia, o governo Lula mal parecia entender do assunto e tampouco o valor estratégico do negócio. O interesse americano nos minerais brasileiros, nesta nova fase de negociações abertas na Malásia, como forma de reduzir a dependência chinesa, pode mudar isso. Depende de o Brasil querer ser gente grande e não chegar devendo à mesa de negociação, como agora, quando tem de responder por perseguições políticas internas e apoio a ditaduras.
A China detém as maiores reservas e capacidade de refino de terras raras | Foto: Shutterstock
O momento atual da política internacional ainda não sugere uma nova Guerra Fria. Ou nada que se compare à do século 20. No entanto, o governo holandês utilizou a “Lei de Disponibilidade de Bens”, um instrumento legal do país criado no contexto da Segunda Guerra Mundial e no início da Guerra Fria para estatizar a Nexperia, uma empresa holandesa de semicondutores que havia sido comprada por um consórcio estatal chinês. A decisão foi explicada como uma proteção ao país europeu, “uma ameaça à continuidade e à salvaguarda de know-how e capacidades tecnológicas cruciais na Holanda e na Europa”. A Nexperia faz chips que são utilizados nas indústrias automotivas e de eletrônicos. Foi claramente uma medida protecionista. E o protecionismo pode ser comercial ou de escala geopolítica.
No caso, foram os dois. Em 2017, a Nexperia havia sido desmembrada do grupo nacional NXP Semiconductors e, dois anos depois, em 2019, comprada por US$ 2,75 bilhões pela chinesa Wingtech. Como forma de acelerar seu desenvolvimento, a China compra empresas estratégicas e praticamente nacionaliza, mesmo no exterior, as tecnologias que vêm no pacote de aquisição. Uma vez dona, passa a garantir o fornecimento de insumos vitais para sua própria indústria. Os chineses têm hoje as principais fábricas de EVs, os veículos elétricos. A Nexperia era vital para o negócio. Os holandeses entenderam a manobra. Os americanos, mais ainda. A Wingtech foi colocada na “entity list”, a lista de pessoas ou empresas que oferecem risco à segurança nacional, política externa ou interesses econômicos dos Estados Unidos.
Tempos atrás, Mark Rutte, Secretário-Geral da Otan e ex-primeiro-ministro holandês, ameaçou com tarifas de 100% os países que continuam comprando petróleo e gás russo, o que indiretamente subsidia a invasão de Moscou na Ucrânia. E mencionou textualmente a China, a Índia e o Brasil. Alguma semelhança com a estratégia da Casa Branca? Absolutamente.
As terras raras, um conjunto de 17 elementos químicos que se transformou na corrida tecnológica do século 21, são mais um exemplo dessa desigualdade que gera disputa. Nem todo mundo tem, mas todo mundo precisa. E a lei econômica da demanda por algo raro e escasso eleva o nível do jogo do poder.
Por muito tempo, o mundo viveu embriagado pelo milagre chinês. Parecia um sonho. Bilhões de dólares injetados na economia de países afetados por baixos níveis de crescimento, com compras de empresas e investimentos, angariavam simpatia automática. Em franca ascensão econômica e cultuando a imagem de serem apenas os financiadores do novo desenvolvimento global, o dinheiro chinês proporcionava dinâmicas novas e fazia ricos e milionários em todos os idiomas. Soava inofensivo. Algo como 100% economia e 0% geopolítica de influência militar. Parecia lindo. Até que veio a escassez da pandemia de covid-19, quando os mesmos chineses, que tinham se tornado a fábrica do planeta, passaram a escolher para quem e quanto mandar de qualquer tipo de produto ou insumo que produziam. O mundo acordou e a simpatia pela China começou a desmoronar. Na história do planeta, ninguém que fica poderoso demais se contenta com suas fronteiras. Os chineses, de histórico imperial, não seriam exceção. Acostumados a duelar com alguém, os EUA foram os primeiros a perceber isso. A guerra comercial do primeiro mandato de Donald Trump, em 2018, nunca foi uma mera questão de tarifas. Afetados severamente pela escassez de insumos hospitalares e de todo tipo na pandemia, com milhares de mortos, os europeus não demoraram a entrar no jogo. Desta vez, dispostos à guerra.
Reconfiguração geopolítica à força
A gritaria chinesa com o que chamou de confisco de sua empresa de semicondutores pela Holanda é o sinal mais preciso de que o governo de Pequim sabe exatamente o que aconteceu. A China, que veria seu PIB ser multiplicado mais de oito vezes nos últimos 20 anos, apostou na ganância ocidental de produzir a baixo custo com trabalhadores chineses obrigados a extenuantes horas nas linhas de montagem. O preço era uma parceria de compartilhamento de tecnologia com cada indústria que aceitou ir para a China. Como as marcas e o sucesso de imagem ainda permaneceram inicialmente com as empresas europeias e americanas, muita gente topou. Deu certo até que o híbrido chinês de capitalismo com ditadura de controle político ficou rico e poderoso. O passo seguinte seria inevitavelmente o de influenciar. Não por acaso. O império chinês que detém as maiores reservas e controla a maior parte do refino de terras raras é também a segunda maior economia do mundo, o maior consumidor de commodities e uma fonte de produtos de alta tecnologia crescente. Não apenas isso. É uma potência militar que investe pesadamente em porta-aviões, caças militares de 5ª geração e tecnologia stealth, a de camuflagem furtiva aérea, o máximo em aviação militar. Em tudo o que o mundo quer, seja avanço tecnológico, poder ou necessidade por metas climáticas, as terras raras são essenciais. Quando Donald Trump disse que acabaria com a obrigação e privilégios fiscais para carros elétricos nos EUA, por exemplo, não era um desaforo a Elon Musk, da Tesla, seu aliado de primeira hora na eleição do ano passado. Mirava o gigante asiático.
A reação da Holanda em parceria com os EUA para conter as pretensões chinesas de projeção internacional é apenas uma das evidências de que a lua de mel com a China acabou. De parceira comercial, a China se tornou concorrente do mundo inteiro. E, dada a sua capacidade de influenciar pela imensa capacidade econômica, uma ameaça. Na guerra recente, os números de commodities e insumos explicam o que está na mesa. Os chineses são altamente dependentes de semicondutores, consumindo mais de 50% de todos os chips de alta tecnologia que o mundo produz, sobretudo os EUA e a Europa. Foi aí que a Holanda entrou nesse intrincado jogo de controle estratégico de oferta de chips aos chineses. Colocou o concorrente pelos mesmos insumos na fila de espera. Como na pandemia, só que com sinais trocados.
Ao ser limitada no acesso aos produtos da própria fábrica que controlava na Holanda, a China se viu forçada a negociar diretamente com os Estados Unidos, que dependem de suas terras raras. Nvidia, AMD e Qualcomm, gigantes da tecnologia do Vale do Silício, respondem por quase 50% das vendas globais. Sob Trump, que desde a primeira administração, a Casa Branca tem imposto uma série de regras que estrangulam a oferta aos chineses, a conversa sobe de nível. É um xadrez de política internacional em que, até antes da pandemia, o governo de Pequim derrubava peças e abria caminho para suas pretensões globais de poder e influência. Não mais. Agora, há um novo elemento de peso para contrabalançar as negociações. Fato é que a segunda administração de Donald Trump à frente da Casa Branca faz da política internacional uma sucessão intensa de acontecimentos só menor que a política doméstica de Washington DC.
Já no final de sua viagem à Ásia, o presidente americano anunciou um acordo com a China. Em troca de redução de tarifas e de investigações da Seção 301 da sua indústria naval, Pequin vai comprar mais soja dos EUA e suspendeu por um ano as proibições de exportação de terras raras. No encontro em Busan, na Coreia do Sul, Trump e Xi Jinping trocaram afagos e elogios. Ainda é um acordo frágil que será revisto anualmente pelas equipes das duas potências. Mas o tabuleiro da geopolítica mudou. O que o líder chinês vai dizer ao púbico interno talvez não importe porque se trata de uma ditadura. Mas o atual ocupante do Salão Oval vai contar mais uma vitória no melhor estilo Trump de ser e dançar.
Os 17 elementos das terras raras são o Escândio, Ítrio, Lantânio, Cério, Praseodímio, Neodímio, Promécio, Samário, Európio, Gadolínio, Térbio, Disprósio, Hólmio, Érbio, Túlio, Itérbio e Lutécio. Sugerem até algo de ficção científica. Não seria um exagero. Mas hoje são os 17 nomes de metais da Tabela Periódica que estão em cada inovação tecnológica que nenhum cidadão do mundo abriria mão de ter. E no poderio estratégico ou militar do qual as potências mundiais jamais vão prescindir. É a realidade da farta disputa por poder e influência desde que o homem desceu das árvores e tomou conta da terra. A vida é assim. Nisso, não vai mudar.
Revista Oeste