sexta-feira, 12 de setembro de 2025

'Um voto supremo', por Sílvio Navarro e Cristyan Costa

Voto do ministro Luiz Fux implode a farsa do golpe de 8 de janeiro, enfraquece Alexandre de Moraes e mostra o caminho para a retomada do Estado de Direito e da Constituição


Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux | Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil


N a manhã da última quarta-feira, 10, por volta das 9 horas, o ministro Luiz Fux iniciou a leitura de um dos mais extensos e minuciosos votos já registrados na história do Supremo Tribunal Federal (STF). Foi o terceiro a se manifestar no julgamento dos principais acusados pelo tumulto ocorrido em 8 de janeiro de 2023, em Brasília, entre eles o ex-presidente Jair Bolsonaro. A Ação Penal 2668 passou pelas mãos do único juiz de carreira da Corte. Treze horas depois, não sobrou nada da acusação contra os réus. Fux estragou o espetáculo de togas. 

Apesar do voto de Fux, o julgamento do chamado “núcleo crucial” do golpe que nunca existiu terminou na sexta-feira, 12, na Primeira Turma do STF, com o desfecho esperado. Todos os sete réus foram condenados a penas severas, com exceção do coronel delator Mauro Cid – dois anos de prisão, mas em regime aberto. Também integram a Turma: Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin e Flávio Dino. 


Luiz Fux, ministro do STF | Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF


Relator da ação penal, Alexandre de Moraes condenou Jair Bolsonaro a 27 anos e 3 meses de prisão, pena que prevaleceu. O único atenuante foi a idade — o ex-presidente tem 70 anos. A jurisprudência da Corte não prevê recurso — chamado de embargo infringente — ao Plenário porque a divergência de Fux foi singular. O prazo para publicação do acórdão é de até 60 dias. 

Na quinta-feira, 11, a última sessão foi marcada por uma artilharia de indiretas e provocações feitas por Moraes — fez um aparte de 18 minutos, com exibição de vídeo —, Flávio Dino e, mais discretamente, Cármen Lúcia. Dois ministros que não integram a Primeira Turma apareceram de surpresa no miniplenário para assistir à divulgação da sentença contra Bolsonaro: o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, e o decano, Gilmar Mendes. O clima foi de celebração. 

As luzes se apagaram e o espetáculo foi encerrado.


O plenário da Primeira Turma do STF no início do julgamento, em 2 de setembro | Foto: Victor Piemonte/STF


Fatos versus narrativas 

Por que o voto de Fux provocou tantas reações dentro e fora da Corte? Brasília adormeceu diferente no meio da semana, como ocorre de tempos em tempos, quando algo inesperado acontece na Praça dos Três Poderes — e do STF ninguém esperava mais nada. Apoiado pelo que classificou de “força-tarefa” de juízes assistentes do gabinete, Fux demonstrou, com rigor técnico e densa literatura, que tudo ali naquele julgamento era uma farsa. Mais: tratou de temas dos quais milhares de brasileiros foram proibidos pelo ministro Alexandre de Moraes de falar — por exemplo, urnas eletrônicas, cerceamento de defesa, censura, imparcialidade da imprensa, superexposição dos ministros na mídia e perseguição política. Falou sobre tudo com naturalidade e sem rodeios. 

Logo nas primeiras linhas, estragou a festa de Moraes e companhia: “ Concluo pela incompetência absoluta do STF para o julgamento desse processo, e por isso impõe-se a nulidade de todos os atos decisórios praticados”. A explicação está na lei e já é conhecida até por quem não é profissional do Direito: nenhum dos réus tem prerrogativa de foro, eles não tinham cargos naquela data, eram só CPFs — a tal teoria do juiz natural. Mas e Jair Bolsonaro? Ele encerrou seu mandato no final do ano. Não existe foro eterno. “Ou o processo deve ir para o plenário ou tem de descer para a primeira instância”, disse Fux.


Ex-presidente Jair Bolsonaro ao lado do ministro do STF, Alexandre de Moraes | Foto: Montagem Revista Oeste/Reuters/Adriano Machado/Shutterstock


A partir desse instante, as câmeras da TV Justiça passaram a captar o incômodo patente de Flávio Dino e o semblante sempre amarrado de Alexandre de Moraes. Fux poderia ter encerrado ali o seu voto, já bastava, mas tinha preparado uma aula de Direito para os colegas da Corte. 


“Não compete ao Supremo Tribunal Federal realizar um juízo político do que é bom ou ruim, conveniente ou inconveniente, apropriado ou inapropriado. Compete a este tribunal afirmar o que é constitucional ou inconstitucional, legal ou ilegal, invariavelmente sob a perspectiva da Carta de 1988 e das leis brasileiras. Trata-se de missão que exige objetividade, rigor técnico e minimalismo interpretativo, a fim de não se confundir o papel do julgador com o do agente político”. (Luiz Fux, julgamento da Ação Penal 2668).


No correr da quarta-feira, o magistrado leu 429 páginas praticamente sem intervalos. Começou por volta das 9 horas e encerrou às 22h45. Até então, o recorde era de Celso de Mello, em 2019, com 152 folhas, lidas em seis horas e meia. Em 2012, Joaquim Barbosa, relator do Mensalão, também gastou bastante tempo, mas fragmentou seu voto em vários dias porque sofria de dor crônica nas costas. Fux optou por um modelo diferente: fez apenas uma interrupção para o almoço e breves pausas de dez minutos, quando seguiu sem desvios nem conversas no corredor até o seu gabinete. Foi uma estratégia para impedir apartes (intervenções), como havia comunicado na véspera. Não fez piadas nem citou nominalmente os demais colegas, segundo ele, “para não ser deselegante”. Nem precisava: Moraes, Dino, Cármen Lúcia e Zanin entenderam quando as mensagens foram endereçadas a eles. A começar pela condenação do presidente Lula da Silva, devolvida à Primeira Instância pelo STF por uma “nulidade parcial” — ou seja, por um detalhe. Na época, Zanin era advogado do petista.


O ministro recorreu várias vezes à memória do julgamento do Mensalão, em 2012, o mais vultoso até hoje, no qual Cármen Lúcia se destacou. Lembrou da corrupção, das pilhas de dinheiro surrupiado — aquilo, sim, foi tentativa de “abolição do Estado de Direito”. Num recado direto, citou mais de uma vez o então decano Celso de Mello, com quem disse conversar diuturnamente. Celso de Mello foi uma espécie de guru da ministra. Usou a ação penal do Mensalão para mostrar a Moraes que um julgamento dessa envergadura requer cautela e tempo. E que o procurador-geral da República produziu uma acusação pífia porque, ao correr contra o calendário, não encontrou provas no “tsunami de dados” — impossível de ser examinado em poucos meses. 

O Mensalão teve 53 sessões, divididas em 138 dias, mas o percurso desde a denúncia até o acórdão levou anos. “Estou há 14 anos no Supremo Tribunal Federal e julguei processos complexos, como o Mensalão. O processo levou dois anos para receber a denúncia e cinco anos para ser julgado”, disse. Para Dino, que redigiu o voto mais raso, recheado de deboche, como brincadeiras com o personagem Mickey Mouse e o bloqueio de cartões de crédito pela Lei Magnitsky, Fux disse que um juiz de verdade deve ter responsabilidade, estudar todo o processo despido de paixões políticas e, principalmente, não ser tão ansioso. Traduzindo: juízes são pagos para cumprir a lei, não para opinar. 

Nesse ponto, Fux parece ter olhado para o espelho antes de entrar no miniplenário da Turma — talvez, o espelho retrovisor. Se cumprir todo o mandato, ele deixará a Corte em 2028, quando completará 75 anos. Antes de chegar ao STF, em 2011, na cadeira de Eros Grau, passou uma década no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Quando entrou para a magistratura, em 1982, ostentava o primeiro lugar no concurso de juiz. É possível que o seu voto sobre a baderna de 8 de janeiro tenha sido o último num caso tão importante — e que será lembrado por décadas. 

Ao analisar os crimes listados pela Procuradoria-Geral da República, buscou referências históricas aos conceitos do Direito — foram mencionados 25 doutrinadores —, jurisprudências da própria Corte, ampla pesquisa em legislação internacional e citações ao baú de leis brasileiras. Sua equipe estudou o caso a fundo — talvez tenha sido a única. Em vários momentos, chegou a ser didático: lembrou que o crime de associação criminosa armada exige que alguém esteja armado, o que não aconteceu. Ou sobre a abolição do Estado Democrático de Direito, quando disse: “Aconteceu alguma coisa no país depois? Nada”. No caso da cópia da “minuta do golpe”, achada na sede do PL um ano e meio depois do 8 de janeiro, foi assertivo: “Já julguei casos em que documentos foram achados e não tinham nada a ver com nada”. 

“Não cabe a nenhum juiz assumir o papel de inquisidor, vasculhar mais de 70 milhões de megabytes de documentos à procura das provas que se encaixem na retórica acusatória”, afirmou.

No aspecto técnico, ele será lembrado no futuro como o roteirista que escreveu a história correta da “trama golpista”, e o que fizeram dela depois. Trata-se de um documento que nem Alexandre de Moraes, nem o procurador-geral, Paulo Gonet, conseguirão rebater com base em provas e fatos — ou a luva que calça a mão, analogia a qual o ministro repetia. 

Até para os críticos, principalmente na velha imprensa, que se apressaram em dizer que ele fora controverso porque votou para condenar presos do 8 de janeiro até o ano passado, havia uma resposta: o juiz deve ter humildade para rever suas posições e mudar se for preciso. Por exemplo: disse que revisou sua avaliação sobre a delação de Mauro Cid porque, embora não aprovasse o formato de depoimentos feitos a conta-gotas, entendeu que o militar compareceu voluntariamente. Ele acatou a delação e, no final, votou pela condenação de Cid. 

Outro ponto importante foi quando demonstrou preocupação com o impacto que os malabarismos jurídicos praticados pelo STF causam para os 18 mil juízes do país. “Cada precedente firmado aqui deve assegurar estabilidade e segurança à ordem jurídica”, disse. O efeito cascata das canetadas dos ministros nos 90 tribunais brasileiros, indiscutivelmente, é um problema real. 

Para a maioria dos presos e seus familiares, os ponteiros do relógio seguirão parados naquela tarde em Brasília. É possível que a aprovação de uma anistia pelo Congresso Nacional aplaque um pouco a dor. O tempo não voltará, mas pelo menos o futuro para centenas de mães, avós, pais e “todas as Déboras” — inclusive a do batom — pode ser em liberdade. Agora, todos eles têm uma sequência organizada de fatos para se defender. A verdade foi colocada no papel. Nunca houve um golpe de Estado em curso, nem ninguém saiu de casa armado, sob orientação de um líder. 

Foi só um voto, é fato, incapaz de reverter um modelo autoritário e contaminado pela política nas Cortes superiores há anos. Mas, por um dia, o país acreditou que há caminhos quando se busca sair da escuridão. Fux não foi um herói. Foi um juiz.  

Silvio Navarro e Cristyan Costa - Revista Oeste