sexta-feira, 7 de março de 2025

'Um farol no topo da colina', por Ana Paula Henkel

A Era de Ouro de Trump busca sepultar a disforia woke e a hesitação e fraqueza globais com um patriotismo sem remorsos


Donald Trump, presidente dos EUA, durante sessão conjunta do Congresso, no Capitólio dos EUA, em Washington, D.C. (4/3/2025) | Foto: Reuters/Brian Snyder 

O discurso de Donald Trum na última terça-feira, 4 de março, marcou a primeira fala do presidente americano perante o Congresso desde que recuperou o Salão Oval, em janeiro. 

Embora semelhante a um discurso do Estado da União, a exposição de Trump não teve o mesmo título oficial, pois ele não está no cargo há pelo menos um ano inteiro. Uma pesquisa da CBS News logo após o discurso não trouxe boas notícias para os democratas. Entre os entrevistados do canal, que tem um alinhamento maior com o Partido Democrata, os números insistem em mostrar que os democratas terão pela frente um trabalho gigantesco para tentar estancar os resultados da colossal vitória dos republicanos na eleição de novembro: 

• 76% aprovaram o discurso como um todo. 

• 77% aprovam o plano do governo de cortar gastos públicos.

• 77% aprovam as políticas de fronteiras. 

• 68% aprovam o curso das tratativas entre Ucrânia e Rússia.



Foto: Reprodução CBS

 

Foto: Reprodução CBS



Foto: Reprodução CBS


Mas o que faz parte da receita da envolvente oratória de Donald Trump, mesmo com pequenas “malcriações”? A conexão com páginas da orgulhosa América que deu certo. Que trabalha. Que cria seus filhos para honrar pai e mãe. Que ora. Que recebe seus imigrantes legais de braços abertos para o engrandecimento de sua sociedade. Que cria e que fomenta ambientes para a criação. Que respeita seus símbolos, seus heróis e suas instituições. Que estimula a autossuficiência. Que brilha em todo sonho de um futuro melhor. 

A cidade no topo da colina 

Em 1630, John Winthrop, a bordo do Arbella e liderando os primeiros imigrantes da Inglaterra para o Novo Mundo, deu a missão a seus irmãos puritanos usando uma passagem tirada do livro de Mateus (5:14): “Seremos como uma cidade no topo de uma colina”. Ali estava um voto solene — um assentamento ordenado cuja luz iluminaria qualquer mundo caído. 

A visão fincou raízes na alma americana, ressoando ao longo da história. Em 1776, Common Sense, de Thomas Paine, uma das obras que inspiraram a Revolução Americana contra a Coroa Britânica, lançou a jovem nação como um “farol” para o amanhecer da liberdade, enquanto em 1838 o abolicionista Wendell Phillips evocou as palavras de Winthrop para exigir um brilho moral, uma cidade reluzente não apenas em riqueza, mas em justiça.


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No século 20, a expressão alcançou novas alturas. Em 1961, o presidente John F. Kennedy discursou para a Corte de Massachusetts imbuído do legado de Winthrop. Ao enfrentar uma nação à beira de uma década turbulenta, ele evocou o passado: “Hoje, os olhos de todos os povos estão verdadeiramente sobre nós — e nossos governos, em 07/03/2025, 11:12 Um farol no topo da colina - Revista Oeste https://revistaoeste.com/revista/edicao-259/um-farol-no-topo-da-colina/ 6/19 cada ramo, em cada nível, devem ser como uma cidade sobre uma colina construída e habitada por homens cientes de sua grande confiança e de suas grandes responsabilidades”.

Para Kennedy, era um chamado à liderança exemplar em meio às tensões da guerra fria e às lutas por direitos civis — um farol de democracia sob o escrutínio global, cada ato um testemunho da promessa da liberdade. Ronald Reagan, por sua vez, fez da “cidade sobre uma colina” uma marca de sua era. 

Ao invocá-la pela primeira vez em um discurso em 1974 para conservadores, ele imaginou a América como uma “cidade brilhante” cuja luz poderia penetrar na penumbra de um mundo dividido pelo comunismo. Eleito em 1980, ele ergueu a frase como um chamado de luta pela nação. Em sua campanha para a reeleição, em 1984, ele pediu aos americanos que mantivessem essa cidade “forte e livre — uma luz brilhante para toda a humanidade”. 

Já em seu discurso de despedida, de 1989, Reagan cristalizou a frase em sua administração: “Falei da cidade iluminada por toda a minha vida política… uma cidade no alto, orgulhosa, construída sobre rochas mais fortes que oceanos, abençoada por Deus e repleta de pessoas de todos os tipos vivendo em harmonia e paz”. Para Reagan, eram as vitórias passadas da América — derrotando a tirania e defendendo as liberdades — que seriam um triunfo na guerra fria, reluzindo contra a sombra da Cortina de Ferro. 


Ronald Reagan dando seu discurso de aceitação na Convenção Nacional Republicana, Detroit, MI, EUA (17/7/1980) | Foto: Wikimedia Commons

Dois outsiders Desde sua primeira campanha, em 2016, Donald Trump tem bebido profundamente na fonte da Era Reagan, canalizando o otimismo inabalável de Ronald Reagan, o populismo econômico, a conexão com as classes que alimentam as engrenagens americanas e a defesa cultural em um molde moderno, que definiu ambos os seus mandatos. Escrevi sobre isso logo após a vitória de Trump, em 2024. 

Como Reagan, que chegou ao poder nos anos 1980 prometendo cortar impostos, desmantelar o inchaço burocrático e restaurar o orgulho americano após anos de estagnação econômica e recuo global, Trump construiu sua marca política com promessas de tarifas para proteger trabalhadores, desregulamentação para liberar o crescimento e uma rejeição ousada ao politicamente correto que ecoa o desprezo de Reagan pela agenda esquerdista e segregacionista. 

Ambos os homens têm perfil outsider — Reagan com seu polimento de Hollywood, Trump com sua personalidade de reality show — e se posicionam como peças importantes de uma nação traída pelas elites. Desde os cortes de impostos até as guerras comerciais, passando pela “América em Primeiro Lugar” e agora com a cruzada anti-woke de seu segundo mandato, Trump espelha a fusão de Reagan entre zelo pelo livre mercado e fervor patriótico, cada um denunciando o excesso governamental enquanto exalta o homem comum. 

A retórica de Trump também encampa o famoso “Amanhecer na América” de Reagan, que prometia renovação após a melancolia de Jimmy Carter. “Tornar a América grande novamente” (“Make America great again“) — slogan de ambos — é a promessa de reverter anos de declínio.


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“A América está de volta” 

E tudo isso foi visto na terça-feira no discurso de Trump para a nação na sessão conjunta do Congresso. Entregando uma manifestação que pulsava urgência, desafio, mas esperança no trabalho e na confiança do país, Trump discursou por uma hora e 40 minutos — o discurso presidencial ao Congresso mais longo dos tempos modernos. Em uma era de divisão, em que o outro lado vive apenas críticas e até o uso do Judiciário para derrubar seus oponentes, as palavras de Donald Trump foram um choque de inspiração e união, reforçando a “cidade sobre uma colina” em uma visão ousada e imponente. Onde Winthrop buscou a graça divina, Paine o fogo revolucionário, Phillips a clareza moral, Kennedy o dever global e Reagan o resplendor harmonioso, Trump ofereceu um otimismo robusto — uma nação não apenas brilhando, mas dominando, construída por um povo decidido a retomar sua grandeza.

Em meio a tarifas abrangentes que abalaram os mercados globais, um governo remodelado pelo Departamento de Eficiência Governamental de Elon Musk e uma guinada na política externa que pausou e irritou o complexo industrial de guerra no planeta — inclusive em Washington —, Trump ousou propor a complexa ajuda ao povo ucraniano e russo: uma real possibilidade de paz. 

O discurso tocou em vários pontos do seu já expressivo segundo mandato. Mas foram as primeiras frases que entregaram o tom de Trump: “A América está de volta — e não apenas de volta, estamos avançando para a Era de Ouro da América!”


Donald Trump, presidente dos EUA, discursa em uma sessão conjunta do Congresso no Capitólio dos EUA. JD Vance, vice-presidente dos EUA, e Mike Johnson presidente da Câmara, aplaudem, em Washington, D.C., EUA (4/3/2025) | Foto: Reuters/Win McNamee

Uma nação livre Ao ouvir o que está entalado na garganta de milhões, a Casa dos Representantes explodiu em aplausos republicanos. Uma onda visceral de entusiasmo abafou os democratas enquanto Trump descrevia os 43 dias de segundo mandato como uma revitalização sísmica, comparando sua enxurrada de quase cem ordens executivas e mais de 400 ações aos feitos fundacionais de George Washington. A energia era palpável desde o início, até pela TV. 

Ele também destacou a tão esperada proteção das fronteiras contra a imigração ilegal, e sua voz cresceu ao anunciar tarifas abrangentes impostas naquele dia ao México (suspensas temporariamente nesta quinta-feira, 6 de março), Canadá e China — taxas de 10% a 25%, que ele chamou de “o maior programa de empregos da história”. 

Ao apontar para a nova fábrica de US$ 4,5 bilhões da Honda em Indiana, anunciada naquela semana, ele bradou: “Isto é a América construindo novamente — aço, suor e orgulho!” 

Trump não poupou elogios ao Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), comandado por Elon Musk, por cortar mais de 100 mil empregos federais e bilhões de dólares em ajuda externa sem o menor sentido para os Estados Unidos: “Arrancamos o desperdício — centenas de bilhões em fraudes — e devolvemos o poder ao povo!” A inspiração de sua visão de uma “Era de Ouro” para a América ganhou vida com histórias de garra americana. 

Em um momento emocionante, Trump voltou a atenção da nação para Devarjaye “DJ” Daniel, um garoto de 13 anos que aspirava a se tornar policial, mas foi diagnosticado com câncer no cérebro em 2018, e o nomeou membro honorário do Serviço Secreto dos EUA. O garoto DJ recebeu sua nova identificação de agente honorário do Serviço Secreto das mãos de Sean Curran, o mesmo agente que protegeu Donald Trump na primeira tentativa de assassinato no comício em Butler, na Pensilvânia, em 13 de julho de 2024. 


Devarjaye “DJ” Daniel reage ao ser nomeado agente honorário do Serviço Secreto no dia do discurso de Donald Trump, presidente dos EUA, em uma sessão conjunta do Congresso, na Câmara dos Representantes do Capitólio dos EUA em Washington, D.C., EUA (4/3/2025) | Foto: Reuters/Evelyn Hockstein

Donald Trump, candidato presidencial republicano e ex-presidente dos EUA, é auxiliado por pessoal de segurança depois de tiroteio durante um comício de campanha no Butler, Pensilvânia, EUA (13/7/2024) | Foto: Reuters/Brendan McDermid 

Em seu discurso, Trump propôs um plano tributário de US$ 4,5 trilhões — estendendo os cortes da reforma tributária de 2017, quando era presidente, que eliminou impostos sobre gorjetas e benefícios do Seguro Social. A destruição da famigerada “cultura woke” por Trump foi um dos pontos centrais, entregue com uma prazerosa ferocidade. 

Ele anunciou uma ordem executiva banindo programas federais de diversidade, equidade e inclusão (DEI) e proclamou: “Acabamos com o experimento woke — governo é para vencer, não para choramingar!” Ele também ridicularizou a “ideologia de gênero radical”, prometendo “proteger os esportes femininos e os vestiários de nossas filhas”, o que arrancou efusiva manifestação de apoio dos legisladores republicanos, enquanto democratas, como o deputado Al Green, gritavam de volta — apenas para serem expulsos no meio do discurso. 

Trump sorriu diante do caos, brincando: “Eles não aguentam a verdade: o woke está destruído, e nós o esmagamos”. Ele conectou esse estorvo cultural à sua visão mais ampla, afirmando: “Estamos derrubando a falta de bom senso para construir uma Era de Ouro onde a força, não a fraqueza, nos define”.

Alguns democratas saíram da Câmara, mas Trump ignorou o desrespeito a uma tradição americana e transformou o dissenso em combustível, provocando: “Deixem eles irem — estão perdendo o maior retorno da história! A Era de Ouro da América apenas começou — uma nação livre, imparável e destemida!”


O deputado americano Al Green (D-TX) é escoltado para fora após gritar durante o discurso do presidente americano Donald Trump em uma sessão conjunta do Congresso, na Câmara dos Representantes do Capitólio dos EUA em Washington, D.C., EUA (4/3/2025) | Foto: Reuters/Kevin Lamarque

O gigante renascido 

Com o punho erguido, lembrando o gesto que fez logo depois da tentativa de assassinato na Pensilvânia com sangue escorrendo pelo rosto, Trump fez um chamado visceral à grandeza, apresentando a América como um gigante renascido — fronteiras seguras, empregos em alta, cultura retomada. Ele não apenas declarou “A América está de volta”; ele a encarnou, mostrando transparência na economia, e um ethos livre da nefasta cultura woke com a promessa de jovens exemplares que estavam na galeria da casa como uma tapeçaria de renovação nacional. 

A Era de Ouro que ele prometeu na campanha não é sutil — é grande, ousada e desafiadora. Uma banana aos céticos e um grito de guerra aos crentes. A América que Trump propõe, e que só o tempo vai mostrar, avança a todo vapor para um futuro que apenas ele ousou desafiar no cenário político recente. Muitos o deram como um “morto politicamente”, mas Trump ressurgiu das cinzas com sua audácia e otimismo. E as palavras de Trump ecoam a Era Reagan — remetendo à revitalização dos anos 1980 com força econômica e orgulho cultural. 

Logo depois do discurso, Michael Reagan, filho de Ronald Reagan, foi até a rede X e postou: “Meu pai estaria aplaudindo o discurso de hoje à nação. Obrigado, Sr. Presidente, por nos fazer sentir orgulhosos novamente. Deus o abençoe e Deus abençoe a América.” 


Ana Paula Henkel - Michael Reagan, filho de Ronald Ronald, sobre o discurso de Donald Trump ao Congresso ontem: “Meu pai estaria aplaudindo o discurso de hoje à nação. Obrigado, Sr. Presidente, por nos fazer sentir orgulhosos novamente. Deus o abençoe e Deus abençoe a América.”




Michael Reagan - My father would be applauding tonites address to the nation..Thankyou Mr President for making us feel proud again..God Bless you and God Bless America.. 

Enquanto o “Amanhecer na América” de Reagan baniu a melancolia da recessão com cortes de impostos, empregos e um ar de comando e superioridade na guerra fria, a Era de Ouro de Trump busca sepultar a disforia woke e a hesitação e fraqueza globais com um patriotismo sem remorsos. Ambos os homens, separados por décadas, compartilham uma convicção comum: a América prospera quando ousa brilhar no topo da colina.

Ana Paula Henkel - Revista Oeste