A ave que simboliza os EUA aprendeu que basta exibir a envergadura para mostrar seu poder
Entre a assinatura de um decreto que transfere a promessa de campanha para a vida real e um discurso que concretiza o que parecia conversa de candidato, Donald Trump não para de surpreender o mundo com aulas práticas que escancaram verdades que estavam a um palmo do nariz. Um exemplo: gastanças inúteis são mais facilmente localizadas (e suprimidas) por empresários que enriqueceram também pela aversão ao desperdício. Outro: não faz sentido despejar um oceano de dólares no financiamento de entidades que dormem e acordam sonhando com a extinção do imperialismo ianque. Mais um: por que cobrar tarifas mais baratas do que as fixadas pelo parceiro comercial? Um país não pode sofrer punições por ser mais rico. Nenhuma nação pode agir como se fosse uma ramificação da Sociedade São Vicente de Paulo.
A novidade mais relevante foi também a menos surpreendente: se a negociação de um acordo for conduzida pelo mesmo homem que chefia a única superpotência do planeta, o caminho da paz será encurtado caso fique claro que o mediador pode derrotar sozinho os exércitos em guerra juntos. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, não sabia disso ao aparecer na Casa Branca para um encontro com o presidente americano. Ao subir o tom da conversa, descobriu que havia um Trump onde costumava ser recepcionado por Joe Biden. E viveu sua Quarta-Feira de Cinzas quando o Brasil ainda celebrava o pré-Carnaval.
Numa reunião com o primeiro-ministro britânico Keir Starmer, Trump dissera que ajudaria Zelensky a recuperar territórios ocupados pela Rússia. “Grande parte do litoral foi tomado, e falaremos nisso”, informou durante a conversa no Salão Oval. “Vamos ver se podemos recuperá-lo ou recuperar boa parte dele para a Ucrânia.” O anfitrião procurou ser gentil com o visitante. Elogiou “a coragem e a resiliência do povo ucraniano”, colocou desavenças anteriores na conta das “pequenas brigas de negociações” e fez um gracejo ao ver que Zelensky havia ignorado a recomendação para que aparecesse na Casa Branca de terno. “Acho que ele está lindamente vestido”, comentou. Em seguida, celebrou o acordo de exploração de minerais que ambos já haviam aprovado. “Estamos ansiosos para entrar e cavar, cavar, cavar”, disse Trump, que prometeu publicamente manter a ajuda militar à Ucrânia. Mais: os EUA já admitem a possibilidade de enviar tropas que, ao lado de soldados franceses e britânicos, garantiriam o cumprimento do acordo de paz aprovado pelos países em guerra.
“Isso deveria ter soado como música para os ouvidos de Zelensky”, comentou o jornalista Marc Thiessen, do insuspeito The Washington Post. “Em vez disso, ele começou a criticar Trump diante da plateia de jornalistas.” Depois de rejeitar sumariamente a hipótese de um cessarfogo imediato, Zelensky acusou Vladimir Putin de ter quebrado esse tipo de trégua 25 vezes. “Ele nunca fez isso quando eu estava envolvido”, disse Trump. “Não, não, você era o presidente”, repetiu o visitante. “Não quando eu estava envolvido”, reiterou Trump. Zelensky insistiu na desfeita. O Washington Post resumiu numa frase a perplexidade de quem vê as coisas como as coisas são: “Zelensky fez o possível para arrancar a derrota das garras da vitória”.
O general aposentado Jack Keane, numa entrevista à Fox News, ditou o que deveria ter recitado Zelensky diante das câmeras: “Obrigado, Senhor Presidente. Obrigado, Estados Unidos. Vou trabalhar com vocês para alcançar um fim pacífico para essa guerra”. Keane está certo, endossou o Washington Post.
Desde que a águia americana foi transformada num dos símbolos do país, a grande maioria dos inquilinos da Casa Branca pareceu inspirar-se na ave que só prolifera na América do Norte. Em terra, a espécie mantém as asas encolhidas, o que parece reduzir seu tamanho. Só ao abri-las para a decolagem é possível contemplar a envergadura que lhe permite voar mais alto que as demais ramificações da espécie. Os governantes americanos também só exibem o poderio nacional quando é preciso reagir a algum desafio ou prevenir ameaças. Foi assim nas duas maiores guerras ocorridas no século passado.
Longe das frentes de combate até 1917, tropas americanas só entraram na Primeira Guerra Mundial depois que a Alemanha começou a atacar indiscriminadamente qualquer tipo de embarcação. Na Segunda Guerra Mundial, o presidente Franklin Roosevelt teve de camuflar sua aversão à Alemanha Nazista e conter a tentação de socorrer a Inglaterra para não contrariar a maioria dos americanos que queriam distância de conflitos em outro continente.
Em sigilo, Roosevelt atendeu parcialmente aos apelos do primeiro-ministro britânico Winston Churchill. Submarinos americanos escoltaram comboios de navios ingleses nas águas do Atlântico, material bélico produzido nos EUA foi remetido clandestinamente a portos europeus, empréstimos multimilionários garantiram a sobrevivência de multidões bombardeadas. O triunfo nazista só não se consumou porque os comandantes militares do Japão acharam uma boa ideia atacar a base americana de Pearl Harbor, no Pacífico. O bombardeio começou na manhã de 7 de dezembro de 1941, um domingo.
No dia seguinte, os EUA declararam guerra aos integrantes do Eixo. Em 1945, duas bombas nucleares apressaram a rendição do Japão. A Alemanha Nazista e a Itália fascista não existiam mais. De novo, os Estados Unidos salvaram a Europa e a democracia.
Com a vitória de Trump, o comportamento da águia americana mudou. “Se eu estivesse no lugar de Biden, não haveria a guerra entre a Rússia e a Ucrânia nem a invasão de Israel pelo Hamas”, repetiu o candidato em campanha. Bastaria abrir as asas da ave para que o mais belicoso combatente ficasse mais cauteloso.
O que parecia apenas bazófia de candidato concretizou-se na continuação do duelo entre Zelensky e o oposto de Biden. Trump ordenou ao interlocutor desbocado que se mostrasse grato aos EUA, avisou que os interesses americanos estão acima das demais nações, revogou o acordo que praticamente fechara com o visitante, suspendeu o envio de dinheiro e armamentos e recomendou-lhe que só reaparecesse em Washington quando estivesse disposto a buscar a paz.
Funcionou. Antes que a semana terminasse, Zelensky qualificou o episódio de “lamentável”, disse que “é hora de consertar as coisas” e declarou-se mais disposto do que nunca a “buscar a paz sob a liderança do presidente Trump”. E a Rússia? “Putin vai concordar”, garantiu. “Tenho motivos para fazer essa afirmação.” Um deles é a águia em sua versão 2025, que também vem acelerando a busca de um acordo entre Israel, a Autoridade Árabe e outros países da região. “O acordo não vai demorar”, garantiu Trump. O Hamas está fora dessa. Motivo? “Uma organização terrorista não é um país.”
Concentrada nessas prioridades, logo a águia americana estará sobrevoando com mais frequência paragens que tratam a pontapés princípios e direitos considerados cláusulas pétreas pela mais sólida e vigorosa democracia do mundo. O governo brasileiro finge não ter visto ave nenhuma. Se vier algum aumento de tarifa, o revide será imediato, sussurram os devotos de Lula. Os ministros do Supremo Tribunal Federal parecem convencidos de que nem a águia americana atinge a altitude das nuvens que os hospedam há seis anos. Deveriam aconselhar-se com Zelensky.
Revista Oeste