Os candidatos à Presidência dos Estados Unidos, Kamala Harris e Donald Trump | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Editorial do Washington Post ressalta o isolamento da imprensa
J eff Bezos, dono do jornal The Washington Post, provocou choro e ranger de dentes com o seu mais recente editorial. Nele, Bezos explicou os motivos que o fizeram decidir, contra o histórico recente e as expectativas do próprio pessoal da redação, não apoiar nenhum candidato na presente corrida eleitoral americana. E atribuiu ao crescente viés político a principal causa da perda de credibilidade da mídia mainstream. “Eis a dura verdade: os americanos não confiam na imprensa” — diz o título do editorial, cuja conclusão ressalta o isolamento da imprensa, cada vez mais autocentrada e distante do público leitor. De acordo com o fundador da Amazon: “A falta de credibilidade não é exclusividade do The Post.
Nossos jornais irmãos enfrentam o mesmo problema. E isso não é apenas um problema para a mídia, mas também para a nação. Muitas pessoas estão recorrendo a podcasts improvisados, postagens imprecisas nas redes sociais e outras fontes de notícias não verificadas, que podem rapidamente espalhar desinformação e aprofundar divisões. The Washington Post e The New York Times ganham prêmios, mas, cada vez mais, falamos apenas para uma certa elite. Cada vez mais, falamos apenas entre nós mesmos.”
Com bastante atraso, Bezos descobriu o fenômeno que, no contexto específico da relação da sociedade com a sua classe falante, eu tenho chamado de “cismogênese”. O conceito foi cunhado nos anos 1930 pelo antropólogo britânico Gregory Bateson em seu livro Naven, uma etnografia do povo Iatmul, de Papua Nova Guiné. Inspirada na cibernética, a palavra foi criada para explicar a complexa dinâmica social manifesta no ritual que dá nome à obra, e que comporta elementos de travestismo e a observância de brincadeiras jocosas entre parentes masculinos de gerações distintas, incluindo simulações parodísticas de relações sexuais entre “tios maternos” (wau) e “sobrinhos” (laua).
Etimologicamente, a palavra é formada a partir da junção dos termos em grego para “ruptura” (skhisma) e “origem” (genesis), tendo por significado, portanto, algo como “origem da ruptura”. Semanticamente, a cismogênese foi definida como “um processo de diferenciação nas normas do comportamento”, tanto de indivíduos quanto de grupos. No interior de um sistema qualquer, a palavra descreve a interação entre elementos que reagem mutuamente ao comportamento uns dos outros, de modo que, se um elemento A se comporta de maneira a induzir uma determinada reação no elemento B, essa reação afetará o comportamento posterior de A, que induzirá nova reação de B, e assim por diante. Um avanço descontrolado desse processo de retroalimentação pode resultar em nada menos que o colapso do sistema.
Bateson distinguiu dois tipos de cismogênese, a simétrica e a complementar. A cismogênese simétrica ocorre quando partes equivalentes reproduzem um mesmo comportamento, conferindo à interação o aspecto de uma rivalidade. Quando, por exemplo, dois indivíduos começam a xingar-se mutuamente, o recrudescimento das ofensas por parte de um causará, em resposta, o recrudescimento das ofensas por parte do outro, e assim sucessivamente, até que, eventualmente, a disputa verbal resulte em vias de fato. Por outro lado, a cismogênese complementar observa-se entre partes assimétricas numa determinada interação, de modo que o comportamento X de uma delas induz ao comportamento Y da outra, o que leva a uma intensificação de X, seguida de uma intensificação correspondente de Y, e assim por diante. Quando, por exemplo, um sujeito de personalidade impositiva interage com alguém de temperamento submisso, os comportamentos complementares de um e outro reforçam-se mutuamente, até o ponto em que uma relação intersubjetiva pode se tornar inviável, transformando-se em submissão total, na qual a relação já não se dá mais entre dois sujeitos, mas entre uma pessoa-sujeito e uma pessoa-objeto.
Tenho recorrido à ideia de cismogênese complementar para descrever a forma de interação entre o povo brasileiro e a sua classe falante, em especial a sua imprensa. Várias pesquisas recentes e o próprio resultado das últimas eleições municipais parecem indicar um consistente aumento no conservadorismo da população. Em geral, a reação midiática a esses resultados tem sido de escândalo, como quem, desde um ponto de observação externo e alheio, observasse um fenômeno natural incompreensível.
Todavia, essa ilusão de distanciamento objetivo e a consequente perplexidade gerada têm impedido a compreensão de que o aumento do conservadorismo do povo guarda uma relação intrínseca com o aumento complementar do progressismo por parte da intelligentsia e da mídia, num processo cumulativo e cismogenético. Com efeito, o grosso dos nossos jornalistas e colunistas de opinião parece não ter ouvido falar do que Einstein ensinou sobre o movimento relativo.
Quando olham para o aumento do conservadorismo do brasileiro, imaginam estar num ponto fixo de observação, não percebendo o fato de que também eles estão em movimento, apenas que em sentido contrário. Daí que o aumento do conservadorismo só possa ser bem compreendido relativamente à intensificação do progressismo da classe falante. A sensação de distância — um fenômeno que, em certa medida, parece ocorrer em escala global — é intensificada pela soma dos vetores de dois “corpos” se movendo em direções opostas: o povo, para um lado; a classe falante, para o outro.
Duas pesquisas recentes parecem confirmar a tendência. A primeira saiu pelo Ipec (ex-Ibope) em abril, dando conta de uma maior adesão popular aos valores de direita. A segunda saiu pelo Laboratório de Sociologia do Trabalho (Lastro) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e queria avaliar o perfil político apenas de jornalistas. O resultado foi o exato oposto ao da pesquisa do Ipec, mostrando que apenas 4% dos jornalistas brasileiros se identificam como de direita (incluindo aí as categorias direita, centro-direita e extrema direita), enquanto mais de 80% se identificam como de esquerda (incluindo aí a esquerda, a centro-esquerda e a extrema esquerda).
Minha hipótese é que, a não ser que os meios de comunicação tradicionais mudem radicalmente de atitude (como sugere Bezos), esse desencontro cultural tende a aumentar ao longo das próximas décadas, porque, como foi dito acima, ambos os comportamentos — o conservadorismo do povo e o progressismo da elite — têm se reforçado mutuamente.
Não se pode prever o fim desse processo cismogenético, mas provavelmente ele não ocorrerá sem traumas. Tudo parece caminhar para confirmar a sombria previsão feita pelo escritor francês Michel Houellebecq no livro Submissão, que aliás me serviu de inspiração para o emprego do conceito de cismogênese no caso em tela: “Eu percebi claramente, e fazia anos, que a distância crescente, agora abissal, entre a população e os que falavam em seu nome, políticos e jornalistas, devia necessariamente levar a algo caótico, violento e imprevisível".
Flávio Gordon, Revista Oeste