E parar na cadeia três dias antes, por ordem do ministro Alexandre de Moraes, em virtude de um vídeo contra o Supremo Tribunal Federal (STF). “É preciso separar a crítica do ataque às instituições”, disse na tribuna a relatora do caso de Silveira, Magda Mofatto. Os deputados que acharam que perderiam apenas os anéis entregaram também os dedos. Ao validar a arbitrariedade de Moraes, com a omissão do presidente Arthur Lira, a Câmara provou que tem medo do STF e abriu um precedente perigoso: deu ao tribunal o poder de influenciar mandatos, em clara violação ao artigo 53 da Carta Magna, que trata justamente da prerrogativa mais valiosa de um congressista: sua imunidade parlamentar. Estupro de prerrogativas Os tentáculos do STF que amordaçaram Silveira chegaram também à deputada Carla Zambelli (PL-SP).
Em 20 de dezembro de 2022, atendendo a um pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), o decano do STF, Gilmar Mendes, mandou Carla entregar a pistola Taurus que usou para se defender de um homem que a atacara na capital paulista. Não bastasse a ordem, no início de 2023 o STF abriu um inquérito para apurar a “perseguição de Carla a um homem negro” durante a eleição do ano anterior. Por ordem de Mendes, agentes da Polícia Federal (PF) levaram mais armas da deputada de seu apartamento funcional, em Brasília. Em agosto, no âmbito de uma nova investigação, mas desta vez por suposta invasão ao sistema do Conselho Nacional de Justiça, Moraes permitiu à PF entrar não apenas no gabinete de Carla, mas em sua residência na capital, para levar passaporte, documentos e aparelhos eletrônicos, incluindo os celulares. Todos esses procedimentos continuam abertos no tribunal. Os avanços do STF não se limitaram à Câmara. Em junho de 2023, Moraes autorizou uma operação da PF contra o senador Marcos do Val (Podemos-ES).
Agentes chegaram a entrar no gabinete do parlamentar, onde permaneceram por quase três horas. O motivo do ato seria a suposta obstrução da investigação sobre os atos de 8 de janeiro de 2023. A ação da PF ocorreu três dias depois de Marcos do Val afirmar, em uma postagem no X/Twitter, que autoridades receberam informações prévias sobre as manifestações, que terminaram em vandalismo na Praça dos Três Poderes. Moraes determinou ainda o congelamento de contas bancárias do senador e de perfis dele nas redes sociais — só em setembro deste ano é que Moraes autorizou Marcos do Val a receber 30% do salário.
Depois de Marcos do Val, foi a vez do então líder da oposição na Câmara, Carlos Jordy (PL-RJ), outro membro da direita que não poupa críticas ao establishment quando sobe à tribuna ou publica posts nas redes. No início deste ano, que é eleitoral, a PF, a mando de Moraes, cumpriu mandados judiciais em endereços de Jordy, que já àquela altura se declarava pré-candidato à Prefeitura de Niterói. O ministro mandou também quebrar os sigilos bancário e telemático de Jordy. No despacho, justificou a necessidade da medida em razão de “indícios que apontam a participação do investigado no núcleo dos financiadores e instigadores dos delitos antidemocráticos”. Segundo Moraes, tudo começou em 2022, na sequência do segundo turno das eleições presidenciais, “com bloqueios de rodovias e a instalação de acampamentos na frente de quartéis pedindo golpe militar”. Jordy acabou deixando a liderança para se cuidar na Justiça.
STF e os seus perseguidos no Congresso Nacional https://revistaoeste.com/revista/edicao-240/perseguidos-pelo-stf/ 3/9 O próximo parlamentar da fila que teve suas prerrogativas invadidas foi o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG). Considerado a nova cara da direita, o congressista não mede as palavras ao denunciar abusos cometidos pelo STF e pela esquerda. Há seis meses, o ministro Luiz Fux abriu um inquérito contra Ferreira porque o deputado chamou Lula de “ladrão” durante um evento na Organização das Nações Unidas. Isso teria “ferido a honra” do presidente.
“Quanto ao pedido de abertura de inquérito formulado pela PF, verifica-se que a representação se encontra fundamentada nos indícios da suposta prática de crime contra a honra em face do presidente”, argumentou Fux. “Nesse contexto, a suspeita de prática criminosa envolvendo o Parlamentar Federal contra o Chefe do Poder Executivo demanda esclarecimentos quanto à eventual tipicidade, materialidade e autoria dos fatos imputados.” O magistrado deu ainda 15 dias para Ferreira “explicar os ataques a Lula.
O ápice do autoritarismo veio na semana passada, com a mais recente vítima da perseguição do Poder Judiciário, o deputado Marcel van Hattem (Novo-RS), um dos maiores opositores do governo Lula e do STF. A pedido da PF, o ministro Flávio Dino autorizou a abertura de um inquérito sigiloso depois de o parlamentar criticar o delegado da PF Fábio Alvarez Shor, responsável por manter preso o ex-assessor Filipe Martins durante seis meses, mesmo sem provas. “O ministro diz que estaria cometendo crime contra a honra ao chamar um covarde de covarde”, disse van Hattem, na tribuna, pouco depois de tomar conhecimento da investigação. “Porque é isso o que policial é ao atuar à margem da lei. Fábio Alvarez Shor cria relatórios fraudulentos para manter preso Filipe Martins ilegalmente.”
Van Hattem saiu ainda em defesa da inviolabilidade do mandato e recordou que os parlamentares estão sob fogo cruzado de todos os lados, do STF à Justiça Eleitoral. O discurso fez referência à cassação do agora ex-deputado federal Deltan Dallagnol, em maio de 2023, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que tem ministros do STF em sua composição. Por unanimidade, a Corte tirou o mandato do exprocurador com base em argumentos bastante frágeis.
O mesmo destino quase alcançou os senadores Sergio Moro (União Brasil-PR) e Jorge Seif (PL-SC). Tanto Seif quanto Moro se mantiveram a salvo porque negociaram com o STF e o TSE. De uns tempos para cá, ambos se tornaram figuras apagadas no Parlamento e reduziram a quase nada as críticas direcionadas ao Judiciário, principalmente a ministros.
Matheus Falivene, doutor em Direito e Processo Penal pela Universidade de São Paulo e professor na PUC-Campinas, constatou que os inquéritos abertos contra van Hattem e outros parlamentares são inconstitucionais. “Autoridades públicas estão sujeitas a críticas realizadas por qualquer cidadão, parlamentar ou não, ainda que severas ou deselegantes, sem que tal fato possa ser considerado crime contra a honra”, observou o jurista. “Na seara penal, a imunidade material impede que os parlamentares respondam pelos chamados crimes de opinião, também denominados crimes de palavra, como são os crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria), de incitação ao crime, de apologia ao crime ou ao criminoso, do Código Penal, além de outros constantes na legislação extravagante.”
Há duas semanas, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ) aprovou duas medidas para conter as arbitrariedades do STF. Uma delas dá poder ao Parlamento para cassar atos do STF, enquanto outra impõe restrições às decisões monocráticas dos ministros. Os deputados discutem também a anistia aos presos do 8 de janeiro.
Com exceção do perdão aos manifestantes, os outros textos estão prontos para ser votados no plenário. Lira, contudo, tem manifestado reticência em pautar as medidas, principalmente depois de ter sido chamado pelo STF nesta semana para “pacificar os ânimos” entre as instituições. De saída do cargo, o presidente da Câmara tem agora a oportunidade de fazer o que não fez no caso Daniel Silveira e em tantos outros abusos dentro da Casa pelos quais ele tem o dever de zelar: pautar os projetos e preservar a imunidade parlamentar, mostrando aos ministros do STF que os três Poderes são completamente autônomos e independentes.
Revista Oeste