Presidente do STF defendeu decisões que podem soar, perante outros países, como censura à liberdade de expressão.| Foto: Carlos Moura/STF
“A democracia não é o oposto da ditadura. É a causa dela.” (Georges Bernanos)
“Estamos fazendo uma defesa vigorosa da democracia. E nós desempenhamos esse papel de enfrentar um movimento que considero global, radical e de extrema direita, de ataque às instituições, que circula desinformação e – ainda está sendo investigado – talvez tenha até tentado um golpe” – disse Luís Roberto Barroso em entrevista ao The New York Times, numa tentativa desesperada, após matéria crítica do jornal nova-iorquino, de justificar para a opinião pública internacional o comportamento tirânico que ele e seus pares têm adotado à frente do STF, hoje um tribunal político de exceção típico de regimes ditatoriais.
Em sua defesa, Barroso recorre implicitamente à noção jurídica alemã de “democracia defensiva” (sobre a qual já falei aqui na coluna), entendida como restrição legal a certas liberdades democráticas com o objetivo de proteger regimes democráticos da ameaça de serem subvertidos por meios legais. Mas, apesar de querer fazer crer ao público que os procedimentos defensivos adotados por ele e seus camaradas de corte ocorrem dentro da ordem democrática regular, o seu próprio jeito de falar, bem como o de alguns de seus pares, já traem a impossibilidade de que assim o seja.
Note-se que, a exemplo do famoso “derrotamos o bolsonarismo” – e também do combate ao “populismo de extrema direita” declarado por seu colega mais histriônico –, Luís Roberto Barroso volta a falar no enfrentamento a um movimento político, o qual, em seu jargão parcial e subjetivo, ele chama de “extrema direita”. Portanto, mais do que apenas combater ações (supondo-se que fosse essa a missão de um magistrado) pretensamente lesivas à ordem democrática, ele e seus companheiros admitem estar combatendo determinados atores: o “bolsonarismo”, o “populismo”, a “extrema direita” etc. Isso ficou evidenciado, aliás, pelas ordens enviadas pelo STF e o TSE às redes sociais para a remoção não apenas de postagens pretensamente antidemocráticas, mas de perfis inteiros.
O que Barroso está fazendo é redefinir os limites da comunidade política nacional. Alguns atores estão dentro, inobstante suas ações. Outros – notadamente os “bolsonaristas” – estão fora
Ao contrário do que diz Barroso, ele não está defendendo a democracia desde dentro da ordem constitucional, que pressupõe um “demos” previamente estabelecido. Em vez disso, o que ele está fazendo é estabelecer os próprios contornos do “demos”, ou, em outras palavras, redefinindo os limites da comunidade política nacional. Alguns atores estão dentro, inobstante suas ações. Outros – notadamente os “bolsonaristas” – estão fora. Em suma: as medidas tomadas por Luís Roberto Barroso e seus pares não se conformam às normas constitucionais. São medidas extraconstitucionais ou, se preferirem, excepcionais. Seu fundamento não é jurídico, mas político-ideológico e, necessariamente, arbitrário (donde, aliás, o palavreado usado por Barroso, Moraes e tutti quanti, que remete sempre ao terreno do slogan militante, da ofensa política e da palavra de ordem partidária, não ao vocabulário técnico do direito).
E a presença da arbitrariedade aí decorre, não apenas da postura individual desse ou daquele ativista de toga, mas da ideia mesma de “democracia defensiva”, que se baseia na decisão subjetiva e equívoca sobre o que constitui um “inimigo” da democracia. Portanto, a arbitrariedade aí não é acidental, mas essencial e inerente, uma vez que a decisão sobre quem excluir da possibilidade de participar do jogo democrático é, em última análise, uma decisão sobre as fronteiras da própria comunidade política, que não pode ser coerentemente tomada por procedimentos democráticos e, portanto, não está sujeita a nenhuma norma prévia. Não foi por acaso que, pedindo licença para violar a Constituição só um pouquinho, Cármen Lúcia teve de fundar o “Estado Excepcionalíssimo de Direito”. Tal como usada pelos agentes políticos do STF, a noção de “democracia defensiva” é um oxímoro, pois não se pode excluir os arbitrariamente apontados como “inimigos da democracia” por meios legais e democráticos. Isso porque, como tudo nas ciências do homem, e diferentemente das ciências naturais, a “democracia” não é um objeto inequívoco, um dado da natureza objetivamente mensurável. Os EUA consideram-se uma nação democrática, tanto quando a Coreia do Norte, que leva o adjetivo até em seu nome oficial...
É claro que, em alguns casos excepcionais, os inimigos da democracia até podem parecer adquirir a objetividade de um fenômeno natural. Peguemos o exemplo do nazismo. O movimento era assumidamente antidemocrático, tendo como uma de suas bandeiras a abolição da ordem liberal, burguesa e democrática vigente na República de Weimar. Foi, aliás, em resposta à ascensão de Hitler por meios democráticos na Alemanha que surgiu a noção de “democracia defensiva”, inicialmente batizada de “democracia militante” (streitbare Demokratie) pelo acadêmico exilado alemão Karl Loewenstein, que cunhou o termo em uma série de dois artigos publicados na American Political Science Review no ano de 1937.
No entanto, como mostram os cientistas políticos Carlo Invernizzi Accetti e Ian Zuckerman, mesmo tendo por referência um inimigo da democracia tão aparentemente objetivo, a teoria da democracia defensiva já apresentava problemas teóricos relevantes, uma vez que Loewenstein partia de uma distinção conceitual imprecisa entre bandeiras políticas fundadas na ideia de “governo constitucional” e bandeiras políticas (como a do nazismo) fundadas no que chamou vagamente de “emocionalismo”. O autor definia o governo constitucional nos termos de uma concepção do Estado de Direito que deve garantir a “racionalidade e a previsibilidade da administração”. Em contrapartida, o “emocionalismo” era definido como “a substituição do Estado de Direito por um oportunismo legalizado sob a aparência de raison d’État”, cujos meios incluíam “um entusiasmo nacionalista exacerbado” e “uma coação psíquica permanente”. Resta que, definido nestes termos, fica claro que o “emocionalismo” está longe de ser exclusividade nazista, sendo, ao contrário, uma constante na realidade política contemporânea, em ambientes mais ou menos democráticos, e sobretudo no contexto de disputas eleitorais. Portanto, a noção de “emocionalismo” está longe de prover um critério seguro, não arbitrário, para distinguir entre os “amigos” e os “inimigos” da democracia.
Mas, antes mesmo de Loewenstein, um outro intelectual alemão já havia concebido o princípio da “democracia defensiva” ou “militante”, embora não tivesse utilizado esses termos. O curioso é que justamente esse intelectual viria a ser reconhecido como o principal teórico nazista do direito. Refiro-me, obviamente, a Carl Schmitt. O aspecto mais interessante sobre a versão schmittiana de “democracia defensiva” é um fato desconhecido da maioria: a sua proposta também teve os nazistas, ao lado dos comunistas, como alvo inicial.
Uma vez que adentram a espiral da “democracia defensiva”, os autoproclamados defensores já não podem abrir mão de apontar novos inimigos a cada dia
Dada a sua célebre filiação ao Partido Nazista, no ano de 1933, Schmitt poderia parecer o mais improvável defensor da aplicação da “democracia defensiva” contra Hitler e seus partidários. No entanto, seus escritos mais importantes durante o período de Weimar constituem uma tentativa de mobilizar os recursos do Estado constitucional para defendê-lo de seus inimigos, internos e externos. Nesse sentido, em 1932, o jurista alemão argumentou explicitamente a favor da proibição tanto do NSDAP (o Partido Nazista) quanto do Partido Comunista. Schmitt o fez com base numa teoria constitucional inovadora e muito influente. Ao contrário de Loewenstein, ele jamais procurou esconder o caráter arbitrário (e “soberano”, segundo o seu vocabulário político) da distinção entre os “amigos” e os “inimigos” da democracia. Ao contrário, a sua tese explicita-o como nenhuma outra.
O conceito principal de Schmitt é o de “núcleo constitucional”, por ele definido como o “conteúdo político” da decisão original que “determina a totalidade da unidade política em relação à sua forma peculiar de existência através de uma única instância de decisão”. Esse núcleo se distingue das “leis constitucionais” específicas, cuja tarefa é determinar os “procedimentos formais” através dos quais a decisão política básica que institui a coletividade deve ser expressa.
Com base nessa distinção entre um “núcleo constitucional” e as meras leis constitucionais, Schmitt afirmava que a República de Weimar estava experimentando um conflito entre a “substância política” e a “forma positiva” de sua constituição, uma vez que a força eleitoral dos partidos nazista e comunista ameaçava minar a “república burguesa” por meios formalmente legais e “parlamentares”. Por essa razão, o autor recomendava explicitamente que o presidente da república utilizasse o artigo 48 da Constituição para invocar poderes de emergência e proibir tanto o partido nazista quanto o comunista, ainda que, estritamente falando, isso violasse o princípio isonômico incorporado na expressão positiva da Constituição de Weimar.
Portanto, a “democracia defensiva” de Schmitt afirma que os poderes de emergência podem ser invocados para justificar uma restrição das liberdades democráticas, ainda que em violação à “lei constitucional” ordinária, desde que tenha por objetivo defender o “núcleo” político da própria constituição. Schmitt explicita algo que, em Loewenstein, estava apenas implícito, a saber: que a decisão sobre o que constitui uma ameaça à sobrevivência da ordem democrática é necessariamente uma decisão excepcional (ou, em última instância, política), irredutível a qualquer norma anterior e, portanto, tomada arbitrariamente pelo detentor do poder.
A decisão sobre o que constitui um inimigo de uma determinada ordem constitucional é necessariamente arbitrária, pois diz respeito às fronteiras da própria entidade política. Se, de acordo com o arcabouço conceitual schmittiano, a democracia é um regime político fundamentado no princípio de “identidade” entre aqueles que fazem as leis e aqueles que lhes estão sujeitos, conclui-se que a exclusão da possibilidade de participar do jogo democrático equivale à exclusão da própria comunidade política. Ora, essa não é uma decisão que possa ser tomada democraticamente, por meio dos procedimentos democráticos consagrados, uma vez que, por definição, esses procedimentos pressupõem que os limites do “demos” (ou seja, os “amigos” e os “inimigos” da democracia em questão) já estejam previamente definidos. Assim, a consequência da análise de Schmitt é que uma ordem democrática não pode abordar o problema da potencial existência de inimigos internos sem repolitizar a questão da adesão à comunidade política e, portanto, sem introduzir um elemento externo de autoritarismo no próprio funcionamento da ordem democrática.
Por fim, não deixa de ser simbólico que um dos primeiros teóricos da “democracia defensiva” tenha mirado os nazistas apenas para, tempos depois, ingressar em suas fileiras, tornando-se o grande formulador da redefinição nazista da comunidade política alemã, um processo que levou ao limite o pecado original do princípio da “democracia defensiva”, ampliando cada vez mais – primeiro para abarcar os deficientes físicos e mentais, depois os comunistas, os judeus, os negros, os ciganos, etc. – o rol de excluídos do “demos” (no caso, o Reich) alemão. Uma vez que adentram a espiral da “democracia defensiva”, os autoproclamados defensores já não podem abrir mão de apontar novos inimigos a cada dia...
Flávio Gordon, Gazeta do Povo