segunda-feira, 2 de março de 2020

"Não, Sanders não", por David Brooks (The New York Times)

Meses atrás, escrevi uma coluna dizendo que votaria em Elizabeth Warren contra Donald Trump. Posso não concordar com algumas de suas políticas, mas a cultura é mais importante que a política. Ela não espalha podridão moral como Trump. Agora, tenho de decidir se apoiaria Bernie Sanders contra Trump.
Todos começamos pela experiência pessoal. Fiz coberturas jornalísticas da União Soviética em seus últimos anos decrépitos. O regime soviético já havia matado 20 milhões de pessoas por meio de coisas como execuções em massa e fomes intencionais. Esses regimes eram escravistas. Escravizaram povos inteiros e lhes tiraram o direito de dizer o que queriam, de viver onde quisessem, de colher os frutos de seu trabalho. 
Mas todos os dias encontramos mais citações antigas de Sanders eximindo a culpa desse tipo de regime, seja na União Soviética, em Cuba ou na Nicarágua. Ele deu desculpas pelos comunistas nicaraguenses que tiraram as liberdades de seus cidadãos. E ainda está dando desculpas por Castro.
Simpatizar com essas revoluções na década de 1920 era aceitável, dado os nobres ideais que as originaram. Fazer isso depois do pacto de Hitler-Stalin, ou da década de 1950, era assustador. Fazer isso na década de 1980 já era moralmente insondável. Não digo tudo isso para condenar Sanders por erros do passado. Digo porque os pressupostos intelectuais que o levaram a adotar essas opiniões guiam seu pensamento até hoje. Acabei de assistir ao populismo destruir o Partido Republicano. E estou aqui para dizer que Sanders não é um democrata liberal. Ele é o que toma o lugar dos democratas liberais.
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Bernie Sanders é um dos favoritos entre os pré-candidatos democratas Foto: Jonathan Enst
O liberalismo tem suas raízes em John Stuart Mill, John Locke, no movimento Evangelho Social e no New Deal. Esse liberalismo acredita na ascensão ao poder pela maneira tradicional: construir coalizões, trabalhar dentro do sistema constitucional e firmar os compromissos necessários para uma sociedade complexa e pluralista. É por isso que liberais como Hubert Humphrey, Ted Kennedy e Elizabeth Warren foram e são senadores tão eficazes. Eles trabalharam dentro do sistema e praticaram a arte da política.
Populistas como Sanders falam como se todo o sistema estivesse irremediavelmente corrompido. Sanders foi um membro inútil da Câmara e tem sido um senador marginal, porque não opera dentro do sistema ou não acredita nesse tipo de mudança. Ele acredita na mobilização revolucionária das massas e, uma vez vencida a eleição, no governo pelo domínio majoritário. É assim que os populistas de esquerda e de direita estão governando em todo o mundo – e é isso que os fundadores dos EUA mais temiam.
O liberalismo celebra razoabilidade, conversação, compaixão, tolerância, humildade intelectual e otimismo. O liberalismo fica horrorizado com a crueldade. O estilo de Sanders incorpora os valores populistas: ódio, polarização amarga e implacável, uma demanda por pureza ideológica entre seus amigos e raiva de seus inimigos.
Um líder liberal enfrenta os fatos novos e muda de ideia. Um líder populista não pode fazê-lo, porque a onisciência nunca pode ser posta em dúvida. Um liberal enxerga tons de cinza. Um populista vê branco ou preto, amigo ou inimigo. Fatos que não se encaixam no dogma são ignorados. Um liberal vê a desigualdade e tenta reduzi-la. Um populista vê uma guerra de classes e acredita na concentração de poder para esmagar o inimigo. Sanders está postulando uma agenda de gastos de US$ 60 trilhões, o que dobraria o tamanho do governo federal. Seria a maior concentração de poder em Washington da história americana.
Sanders se disfarça como algo menos revolucionário do que realmente é. Afirma ser nada mais que a continuação de Franklin Roosevelt e do New Deal. Está 5% certo e 95% errado. Houve um período, por volta de 1936 ou 1937, em que Roosevelt tentava dobrar a Suprema Corte e transformá-la no órgão arrogante e impositivo que os fundadores temiam. Mas não foi assim que FDR conquistou a presidência, aprovou o New Deal ou liderou a nação durante a 2.ª Guerra. Ele não achava que os EUA fossem uma força maligna nos assuntos mundiais.
Sanders também afirma que está apenas tentando importar o modelo escandinavo, o que é crível se você não souber nada sobre a Escandinávia ou o que Sanders está propondo. Esses países têm Estados de bem-estar generosos, mas podem pagá-los porque entendem como o capitalismo de livre mercado funciona, com menos regulamentações sobre a criação de negócios e o livre-comércio.
Um espectro ronda o mundo: populismos corrosivos de direita e de esquerda. Esses populismos surgem de problemas reais, mas são as respostas erradas para eles. No século passado, democratas liberais souberam combater as ameaças da esquerda populista. Souberam defender a legitimidade de nosso sistema, mesmo enquanto o reformavam.

A julgar pelos últimos debates, nenhum dos atuais candidatos se lembra desses argumentos ou sabe como rebater o populista à sua esquerda. Vou apostar minhas fichas no liberalismo democrático. O sistema precisa de reforma. Mas não consigo fechar com nenhum dos dois populismos que ameaçam derrubá-la. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

David Brooks / The New York Times, O Estado de S.Paulo