LISBOA
Devemos a Platão uma das mais vetustas definições do amor. Acontece no seu “Banquete”, pela boca de Aristófanes. Houve um tempo em que os seres humanos eram perfeitamente esféricos. Mas Zeus decidiu cortar-nos ao meio para punir a nossa soberba.
A partir desse momento doloroso, a vida dos mortais passou a ser uma busca incessante pela outra metade que nos falta.
O mito entrou na corrente sanguínea do amor romântico. Mas existem duas formas de olhar para essa história, com consequências igualmente distintas.
A primeira é imaginar que a parte que nos falta é um prolongamento de nós próprios. Todos conhecemos versões eruditas ou populares em que ele, ou ela, procura o seu par ideal.
Corrijo. Todos nós, em algum momento, imitamos esses personagens de romance ou cinefilia, procurando no outro a confirmação do que somos.
Confesso que a ideia nunca me entusiasmou. Uma extensão de mim próprio nos meus gostos e desgostos? Dispenso. Quem deseja apenas o reflexo das suas excelsas personalidades deveria poupar-se ao trabalho e casar consigo próprio.
Não brinco. Na Europa, e sobretudo na Ásia, esses casos de “sologamia” têm crescido nos últimos anos. Com cerimônia a rigor: a pessoa jura amar-se até ao fim da vida e, presumivelmente, se beija ao espelho.
Mas existe outra forma de olhar para a história platônica. A metade que nos falta não é mais do mesmo; é diferente do mesmo, e essa diferença basta. Essa diferença nos salva do tédio da repetição.
Anos atrás, quando assistia a essa obra prodigiosa de Lawrence Kasdan que é “O Turista Acidental”, encontrei na voz de Macon (leia-se: na belíssima voz de William Hurt) a observação mais sábia sobre o assunto. O importante talvez não seja apenas o quanto amamos alguém, dizia ele. Importante é também a pessoa que somos quando estamos junto da pessoa que amamos.
Demorei a entender essa sutil diferença. Mas mesmo uma cabeça dura como a minha acaba por ceder com as pancadas da vida. Gosto da pessoa que sou quando estou junto da pessoa que amo. Porquê?
Um dia perguntaram a Evelyn Waugh como era possível ele ser católico e, ao mesmo tempo, uma pessoa absolutamente intratável. O escritor respondeu que, se não fosse seu catolicismo, ele dificilmente seria um ser humano.
Faço minhas as palavras dele. A mulher que eu amo é a minha igreja. Ela me recebe como pecador e me absolve na mesma medida. Não me torna apenas melhor. Torna-me um ser humano apresentável.
Claro que, oito anos atrás, eu não sabia disso. Nem podia. Foi na virada do ano, quando a vi pela primeira vez, que o pensamento diabólico se insinuou: avança e estarás perdido.
Alguém dizia que o amor não é para covardes, e eu era um covarde. Como são os homens, quase todos, para quem conquistar várias mulheres é sempre mais fácil e mais seguro do que conquistar a mesma mulher várias vezes.
Mas não era possível ser covarde naquele momento com alguém que prometia inundar de verão quem vivia no conforto ilusório da frieza outonal. Dizemos que não queremos luz, tanta luz, porque tememos a claridade. Mas a verdade é que só pensamos naquela luz, em mais luz, como Goethe no seu leito derradeiro.
Então o verão chega e afasta cada sombra do passado que ficou pendurada nos velhos cabides da memória. Tudo nos parece risível agora porque aprendemos a rir melhor. É um riso de perdão, não de despeito. É um riso de nós, para nós, sem máscaras de qualquer espécie.
Todas as máscaras caíram entretanto e ficaram apenas as palavras essenciais. Amantes. Cúmplices. Amigos. Pais.
Avança e estarás perdido? Eu avancei para me perder. E para me encontrar diferente do outro lado.
Hoje, último dia de 2018, estou sentado à mesa, cultivando a única paixão rival e tolerada: a escrita. Bato essas linhas nas primeiras horas da manhã, pateticamente em cuecas, enquanto o terno aguarda pelos meus talentos com o ferro de passar.
Por isso apressa-te, rapaz, coloca um ponto final nesse texto sentimental e ridículo, e sai de casa porque já estás atrasado. Onde já se viu tamanha deselegância?
É o noivo que espera pela noiva, e não o contrário.