terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Otimismo sem freios do Vale do Silício passa por teste de realidade

SAN FRANCISCO
A Hustle, uma empresa de marketing em serviços de mensagens, era um retrato da generosidade do Vale do Silício. A empresa gastou milhões de dólares obtidos de investidores como a Alphabet, que controla o Google em contratações novas e caras kombucha servido na torneira, fliperama e um salário superior a US$ 100 mil por ano ao presidente-executivo.
Muitos empregados da empresa ficaram chocados, certo dia no começo do mês, quando o cofundador e CEO, Roddy Lindsay, disparou um email coletivo, pela manhã, informando-os de demissões em massa. Antes que a semana acabasse, até a máquina de café expresso havia sido retirada da cozinha, na sede da Hustle em San Francisco.
A Hustle está longe de ser a primeira startup a gastar dinheiro sem controle, em uma era de riqueza para o setor de tecnologia. A novidade, agora, é que a conta parece ter chegado.
Patinetes da Bird em rua da Califórnia; startups adotam metas modestas de valor de mercado
Patinetes da Bird em rua da Califórnia; startups adotam metas modestas de valor de mercado - Robyn Beck/AFP
Os investidores de startups e os fundadores de companhias alertam que o crescimento descontrolado dos últimos anos —que alguns indicadores apontam como superior ao do boom da internet na década de 1990 —está encontrando limites.
Uma queda forte nas ações de empresas de tecnologia de capital aberto está gerando cautela nos investidores do Vale do Silício, especialmente no caso de startups mais jovens e desprovidas de caixa.
“O otimismo sem freios que prevalece em nosso mundo está recebendo uma injeção de realismo”, diz Sunny Dhillon, que investe em startups.
A maioria das startups fracassa, mesmo nos melhores momentos. Um sinal preocupante, no entanto, é a redução no volume dos chamados “seed deals”, os primeiros investimentos.
O número dessas transações caiu para 882 no quarto trimestre, ante mais de 1,5 mil em relação ao mesmo período há três anos, de acordo com o grupo de pesquisa PitchBook.
Os administradores de capital para empreendimentos costumam acompanhar a trajetória das ações de tecnologia, como fizeram no começo de 2016, ao reduzir abruptamente os investimentos —para depois retornar com toda força.
O índice Nasdaq, que serve como referência primária para os gigantes de tecnologia, como a Apple, caiu em 13% ante seu pico, em agosto. Isso gera pressão em empresas iniciantes, incluindo as bem capitalizadas.
A Bird Rides e a Lime, duas startups de patinetes elétricas compartilhadas, avaliadas em mais de US$ 1 bilhão, adotaram metas mais modestas para a avaliação de seu valor de mercado. Isso representa uma indicação de que os investidores nesses grupos estão preocupados com seu crescimento futuro.
Na semana passada, o serviço Munchery de kits-refeição fechou as portas, depois de passar por numerosos modelos de negócios e de consumir mais de US$ 100 milhões investidos por grandes nomes do mercado.
A Space Exploration, a empresa fabricante de foguetes de Elon Musk, anunciou este mês que realizaria cerca de 600 demissões, “para se tornar uma companhia mais enxuta”, diante dos desafios “difíceis que temos pela frente”.
O anúncio surgiu um dia depois que a Ford Motors fechou a Chariot, empresa de vans de transporte de passageiros, mencionando queda na demanda.
Mesmo o SoftBank Group, um dos investidores mais generosos do mercado, se viu forçado este mês a reduzir em 88% o valor de seu investimento planejado de US$ 16 bilhões na WeWork, startup de espaços de trabalho compartilhados.
A atitude dos investidores em tecnologia está mudando, diz Josh Wolfe, administrador de capital para empreendimentos na Lux Capital. Ele afirma que o “medo de ficar de fora” é substituído pelo “medo de ser feito de trouxa”.
Os investidores minimizam, dizendo que os acordos com startups dependem de semanas ou meses para ser negociados, o que significa que as reverberações plenas de uma tendência demoram a se concretizar.
O fato é que as companhias apoiadas por esses investimentos arrecadaram o recorde de US$ 131 bilhões no ano passado, ultrapassando a maior marca anterior, de US$ 105 bilhões, estabelecida em 2000, segundo a PitchBook.
O influxo de dinheiro de investidores americanos e internacionais serviu para proteger as startups cujos modelos de negócios eram dúbios.
A tendência pode se manter. Diversos investidores criaram fundos multibilionários. Gigantes da tecnologia que ainda não abriram seu capital, como a Uber e o Airbnb, devem fazê-lo este ano, o que permitirá que alguns de seus investidores iniciais liquidem posições e disponham de dinheiro para novas apostas.
Christian Ferry, que investe capital para empreendimentos em companhias de blockchain e criptomoedas, disse que era parte dos conselhos de três empresas que fecharam nos três últimos meses. Acostumado a ser convidado a fazer palestras pagas, ele diz que este ano os convites diminuíram.
“No ano passado, as passagens que me enviavam eram da classe executiva”, ele disse. “Este ano, até passagens de classe econômica estão difíceis.”
A Hustle, que ajuda empresas em seus esforços de marketing via mensagens de texto, ganhou alguma fama em 2016 por ajudar a campanha presidencial do senador Barry Sanders a atrair voluntários. Lindsay, que estudou na Universidade Stanford e foi um dos primeiros empregados do Facebook, arrecadou US$ 8 milhões em capital inicial, em 2017, e parecia nada tímido quanto a gastar esse dinheiro.
A Hustle montou três escritórios e em abril arrecadou mais US$ 30 milhões em capital, em parte das divisões de capital para empreendimentos da Alphabet e da Salesforce. A companhia contratou mais de 150 pessoas e equipou sua sede com um par de jogos de fliperama ao preço de US$ 12.995 por máquina.
A empresa continuava a contratar pessoal, até recentemente, a despeito de não ter atingido suas metas de receita trimestrais e anuais. Os investidores não se interessaram por ampliar sua participação depois que a Hustle falhou no cumprimento de metas como a obtenção de novos clientes empresariais.
“Cometi o erro de principiante de não vigiar de perto o nosso crescimento”, escreveu Lindsay no site da companhia.
A porta-voz disse que salários e benefícios respondem por cerca de 70% dos custos operacionais da empresa. A Hustle pagava US$ 125 mil por ano a Lindsay, mais de 60% abaixo da média do mercado. Na semana passada, Lindsay concordou em reduzir seu salário a US$ 55 mil por ano.
Lindsay disse a colegas que está contratando uma pessoa para o primeiro escalão da empresa, com a missão de ajudá-lo na estratégia. O novo executivo é um nome conhecido, de acordo com a pessoa informada, por ter ajudado na liquidação do site Pets.com, na crise da internet do começo dos anos 2000.
Traduzido do inglês por Paulo Migliacci

Rob Copeland, The Wall Street Journal