No clima primaveril de diplomação e festejos, o novo governo desabrocha exalando um odor inconfundível de laranja podre, com suspeitas de velhas práticas, esquemas condenáveis e descaso pela verdade a imolar uma gestão que se pretendia, desde o início, incorruptível.
A movimentação atípica de uma pequena fortuna por parte do motorista policial Fabrício de Queiroz, amigo dileto, de longa data, dos Bolsonaro, e os depósitos que entravam e saiam de sua conta na mesma velocidade dos pagamentos dos salários da Alerj (a Assembleia Legislativa do Rio), deixam um rastro imenso de dúvidas sobre a lisura das práticas dessa turma.
Estaria a dinastia Bolsonaro reeditando a fórmula de um “mensalinho”, usual entre parlamentares que costumam cobrar uma espécie de mesada ou pedágio dos funcionários em cargos comissionados devido ao emprego concedido?
Ao menos sete assessores da equipe do então deputado e agora senador eleito, Flávio Bolsonaro, efetuaram transferências para a conta do ex-PM, dublê de motorista Queiroz, que recebia de salário à época a quantia de R$ 8.517 por mês, de toda incompatível com os montantes que passearam por suas mãos.
A troco de quê?
O Coaf suspeita que essa seja uma movimentação típica de conta de passagem na qual o real destinatário do valor creditado não é o seu titular. Os saques e depósitos em dinheiro vivo, para não deixar rastros, reforçam a hipótese.
As operações obedeciam a um padrão: entravam e saíam da conta em intervalos de tempo pequenos, às vezes no mesmo dia. Ao menos 176 saques do motorista titular obedeceram a essa rotina (precedidos de um depósito em espécie de valor em patamar semelhante), 50 deles em quantias acima de R$ 2.000, ao longo do ano de 2016.
Não há como evitar os questionamentos.
E as respostas, para afastar qualquer ranço de desconfiança de um dízimo ou de um caixa dois em gestação para o partido ou em benefício do parlamentar responsável – no caso, Flávio, digníssimo representante da estirpe Bolsonaro –, deveriam ter vindo de bate pronto.
Não vieram.
O presidente eleito, depois de um ensurdecedor período em silêncio, apareceu para falar do que entende ser a parte que lhe cabe nesse latifúndio.
Justificou um cheque de Queiroz para a conta de sua mulher, Michelle Bolsonaro, alegando tratar-se de um empréstimo no montante total de R$ 40 mil que ele estava devolvendo em prestações.
Queiroz e Bolsonaro pai se conhecem há mais de 40 anos, compartilharam juntos diversos momentos de lazer, desde encontros para churrascos até pescarias, devidamente registrados. E esse vínculo do servidor com a família o colocou na inevitável condição de constranger os futuros detentores do poder em Brasília. Não são apenas os R$ 24 mil depositados na conta da primeira-dama.
Nem os alegados R$ 40 mil dados em empréstimo pelo mandatário em pessoa – que, de resto, sequer declarou a quantia ao Fisco. O que dizer dos inúmeros repasses na conta desse assessor, da dinheirama de mais de R$ 1,2 milhão que ele gerenciou com precisão diligente, tal qual um tesoureiro, ao longo de quase um ano?
Queiroz saiu estrategicamente dos holofotes para evitar cobranças. De todo modo, seria só ele a ter de prestar esclarecimentos, como pretendem os Bolsonaro irritadiços, que atribuem a revelação do caso a perseguições indevidas da imprensa, do Coaf, da oposição, de forças ocultas e do diabo a quatro?
Naturalmente que não.
Essa reação – tão igual e previsível entre autoridades costumeiramente flagradas em situações duvidosas – é típica de quem tem dificuldades de passar da condição de atirador de pedras à posição de vidraça. Os Bolsonaro e seus asseclas se portam como senhores da verdade que não devem satisfações a ninguém. Ou, no mínimo, acreditam que o assunto está resolvido, e ponto.
O motorista que se vire para explicar. Não é razoável aceitar que alguém tão próximo do clã, que conseguiu pendurar no gabinete de Flávio a mulher e duas filhas, além dele próprio – e colocar uma outra herdeira em um cargo de confiança junto ao mandatário eleito –, reforçando laços de confiança duradoura com os Bolsonaro, tenha operado todo esse esquema de repasses de forma voluntariosa, sozinho e sem conhecimento superior.
Queiroz, com rendimentos que jamais justificariam tamanho desprendimento pecuniário, não virou da noite para o dia um exímio financista, capaz de angariar recursos fartos.
Naturalmente, é de se supor que agiu com o beneplácito dos chefes, tal qual um laranja, como tantos outros que se prestaram ao papel na putrefata política dessas paragens. O histórico laranjal brasileiro, que serve de fachada aos poderosos, parece não encontrar limites.
Como uma praga, brota por todo o lugar, nas diversas vertentes partidárias, sem preconceito ideológico à direita ou à esquerda. Teria, agora, tomado também os novos titulares do Planalto? Essa é a dúvida que precisa ser imediatamente dissipada. Não tem que reagir com raiva ou descaso os senhores do novo time.
O futuro chefe da Nação, que foi eleito com a bandeira de moralização da atividade pública, “contra tudo que está aí”, não pode se furtar à missão de deixar tudo às claras, sem respostas pela metade.
A imagem do futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, abandonando uma entrevista no meio, esbravejando destemperado diante das câmeras ao ser questionado sobre o tema, mostra a intolerância e inabilidade que ainda grassam com fervor entre os novos ocupantes do Planalto.
Não vão terminar bem se insistirem nesse caminho.
IstoE