Militar também é cidadão?
Sem dúvida. Mas à instituição à qual ele pertence é confiado o exercício do componente mais pesado do monopólio do uso da força que a Nação delega ao Estado. E isso põe regras rígidas para os que encarnam essa instituição participarem da discussão política, especialmente da parte dela que diz respeito à conquista e ao exercício do governo. Como o poder, mais que tudo, corrompe, convém manter uma distância profilática entre o poder armado e o poder desarmado (assim como também, e pela mesma razão, entre o poder político e o poder econômico). Os dois (ou os três) concentrados nas mesmas mãos, diz a História que não registra exceções, produzem tentações fortes demais para a natureza humana resistir e esse é o caminho mais curto para o poder absoluto, aquele que corrompe absolutamente.
Um militar tem todo o direito, portanto, de desligar-se da instituição das Forças Armadas para tentar uma carreira política. Mas militares da ativa ou da reserva ainda ligados às Forças Armadas, se quiserem enveredar por esse caminho, têm de escolher entre o desligamento da instituição ou manter, acima de tudo, o respeito à hierarquia que lhe impõe silêncio no debate político-eleitoral.
O limite desse racional está na definição das atribuições constitucionais das Forças Armadas, a primeira das quais é defender a própria Constituição, cujos fundamentos básicos são a soberania do povo sobre o Estado e o princípio da alternância no poder, que definem a natureza democrática do regime.
As Forças Armadas brasileiras vêm respeitando irrepreensivelmente esse limite desde 1985. Agora essa fronteira começa a ficar menos nítida. Mas seria falsear a verdade apontar os últimos pronunciamentos que passaram da medida como manifestações espontâneas de pessoas ou instituições sedentas de poder.
A mais nefasta das especialidades da esquerda radical militante – aquela que põe as ideias à frente das “narrativas” e as faz independentes dos fatos na estruturação da sua “lógica” – é materializar os fantasmas que cria. Se há algum grau de atrito dentro dos limites da convivência e da tolerância entre classes, raças, gêneros, preferências ideológicas e o que mais possa diferenciar pessoas de pessoas, ela trabalha sempre no sentido de acirrá-lo até transformá-lo na “guerra” com que justifica o seu próprio radicalismo e, no extremo, a eliminação física do adversário transformado em “inimigo”.
As declarações de militares assinaladas em condição de impedimento não são propriamente ações, são mais exatamente reações. O partido ou o candidato que oficialmente aponta como exemplo regimes como o da Venezuela e outros que se estabelecem exclusivamente pela força, está assumindo uma posição de fato contra a democracia e a alternância de poder prescritas pela Constituição. Também não foram os militares, são a presidente do PT em pessoa e os dois candidatos que disputam a simpatia da esquerda – o “poste” finalmente erguido e Ciro Gomes – que têm afirmado textualmente que suas candidaturas são uma etapa do projeto de anular a condenação de Lula pela Justiça e pelas leis vigentes no Brasil (“à bala” se alguém resistir, na versão de Ciro). Tudo isso não apenas soa, como frequentemente se apresenta explicitamente como ameaça direta contra a democracia e o princípio da alternância no poder.
E o que dizer de um Supremo Tribunal Federal que, coroando uma sequência de manobras de uma insistência impossível de interpretar como fortuita, proíbe a produção de uma prova física do voto – como as de que dispõem todos os países democráticos do mundo – depois de ela ter sido aprovada uma vez pelos representantes eleitos do povo e reconfirmada, depois de vetada pela “presidenta” petista, com votação muito mais que suficiente para reverter um veto presidencial? Ou da sucessão de decisões votadas pelos representantes eleitos do povo e em seguida anuladas, seja por votações do plenário, seja por decisões monocráticas de ministros do STF que, de troco, legislam em causa própria atribuindo-se aumentos de salário indecentes num quadro de economia de guerra para o resto do País? Onde tudo isso deixa o princípio da soberania do povo?
A válvula de escape que resta quando as demais instituições rateiam é o chamado 4.º Poder da República. Mas também a imprensa tem falhado. Só que há uma realidade aqui fora que já foi a um extremo tal que não há mais como contemporizar. A estratégia de paralisar o governo Temer esfriou a memória nacional e diluiu os direitos autorais do desastre econômico do lulismo. Isso, mais a velha mistura de desinformação com miséria assistida, explica a posição de um terço do eleitorado. A penúria em que essa paralisia deixou a classe média meritocrática, os microempresários, os caminhoneiros, os prestadores de pequenos serviços, os aposentados do País real e até a fatia de baixo do funcionalismo mal pago (que inclui boa parte dos militares e dos policiais), explica o outro terço. De um jeito ou de outro, esse Brasil tem de se fazer ouvir. Cada fato omitido, cada pergunta que deixar de ser feita pelos atores contratados pelos sistemas democráticos para atuarem nessas ocasiões acaba por voltar na boca de alguém que deveria ficar do lado de fora do debate eleitoral. Daí ser a verdade – inteira – não apenas o melhor, mas o único remédio receitável para uma democracia que se quer representativa.
Mas por mais “justificados” pelos fatos que tais desabafos possam estar, é preciso resistir à tentação de fazê-los. O Brasil, à beira de um processo de entropia que uma vez instalado se torna irreversível, já viu esse filme. Andar à margem da democracia, não importa por qual margem, é para os antidemocratas. Por isso ao terço restante do eleitorado – aquele que insiste na democracia sem aspas, nem vírgulas, nem hiatos – resta, por enquanto, uma escolha de Sofia que toda e qualquer suspeição em torno do respeito ao principal só fará tornar ainda mais difícil.
JORNALISTA
O Estado de São Paulo