quarta-feira, 12 de setembro de 2018

"Irmãos", por Roberto DaMatta

Deprimido, vou ao Bar do Soares e me encontro com um sumido Pedro Memórias. 

Acompanho-o numa cerveja. Falamos deste cenário de autocastração (por excelentes razões, como ocorre no caminho dos radicalismos e das ditaduras) do Brasil por nós mesmos, mas noto que há nele algo de pessoal e íntimo na sua tristeza. Como amigo de infância, pergunto o que — além do incêndio do Museu Nacional — houve e fico sabendo que Pedro Memórias perdeu mais um irmão. Desta feita, o câncer levou o seu último irmão.

O irmão, Ricardo Memórias, foi enterrado recebendo imóvel na sua armadura de carne fria na qual se transformou as lágrimas da esposa, dos filhos e das netinhas que “choravam de dar pena”. Ao usar esse lugar-comum, os olhos molhados de velho do meu amigo Pedro encheram-se de lágrimas. Tirando automaticamente um imaculado lenço de sua desbotada bermuda, ele prosseguiu na sua dor, acompanhado pelas minhas ladainhas melancólico-teóricas, pois, como diz um sábio: “Quem honra a vida pensa inevitavelmente na morte.”

Eu — que ouvi falar da morte desde que me entendo por gente, e fui atrás do seu paradoxo além do meu coração para encontrá-la nos livros — procurei aliviar o amigo com a seguinte observação:

“A morte é a experiência mais paradoxal da consciência justamente porque o morto que a experimenta e vive, dela não fala. A inescrutabilidade da morte jaz nessa contradição. Dividimos tudo uns com outros, mas a morte, com a qual temos um inevitável encontro, nos sequestra para sempre. E assim ninguém sabe, nem mesmo de um filho, pai, mãe, irmão ou pessoa amada, como é morrer. Os sonhos, doenças, aventuras, delírios e viagens nos levam ao liminar mas dele voltamos. Não podemos, porém, compartilhar a morte porque ela só nos deixa o morto. A morte, na sua indiferença absoluta, é o limite da sedução dos engajamentos sociais. Por isso, ela tem o poder de fechar feridas, enterrar ternuras e inaugurar saudades.

Diante do morto, falamos baixinho e choramos por amor. Aquele contraditório amor que tudo perdoa.
________
— Ele era o meu último irmão — disse Pedro Memórias. — Éramos seis, e hoje somos apenas eu, o mais velho, e minha irmã Ana, a mais nova.
Balbuciei alguma coisa ainda mais patética. Mas dele veio um jorro de pensamentos engavetados na experiência da fraternidade:
“Para mim, o ‘filho único’ formava uma aristocracia em casas como a nossa, onde eu dormia em cama-beliche. Estava convencido de que o nascimento em série dos irmãos era um sinal de perda de afeto. Como compreender que o amor materno é um céu cheio de estrelas? Recebi o papel do filho ‘mais velho’ como exemplar e virei um egoísta. Tinha enorme inveja de quem era filho único. E, quando falo com eles, ouço que queriam muito ter irmãos. Um amigo querido, membro dessa confraria dos filhos solitários, chegou a inventar uma irmã e, como me confessou numa carta confortadora, só foi conhecer a inveja, a competição, a indiferença e a ingratidão quando adulto. Bem aventurados os que vivem tudo isso em casa...

— Agora — termina Pedro Memórias. — Ricardo surge dentro de mim ao lado de Fernando-e-Romero (os gêmeos criados como uma só pessoa) e Renato, o caçula dos homens (o campeão de iatismo); e a minha amada irmã Ana, a caçula que chora ao meu lado...
__________
Registro minha alegria pelo nascimento de Carlos Diegues como um imortal na ABL. Cinema é uma outra “letra”, e Cacá, mestre na arte de ver o mundo por meio de imagens em movimento, vai enriquecê-la. Ademais, ele é um homo humanus, como dizia Settembrini a seu pupilo Hans Castorp na “Montanha mágica” de Thomas Mann. Quando eu sofri uma perda irreparável, ele foi bom como um irmão. E a bondade não deve ser esquecida neste mundo de agressões, invejas e enfrentamentos no qual só quem presta são os nossos.




O Globo