Folha de São Paulo
Se existe um lugar triste nesse mundo, um país amaldiçoado a só produzir notícias de atentados à liberdade e à igualdade, esse país é o Zimbábue, que a Acadêmicos do Tatuapé, campeã do carnaval de São Paulo, homenageou e chamou de "terra abençoada".
Eu sei, não dá para levar sambas-enredo a sério. A expressão "samba do crioulo doido" define há muito tempo a mistureba sem sentido das músicas dos desfiles.
Escolas criam homenagens a qualquer um que oferecer um bom cascalho —pelo patrocínio, já houve sambas-enredo em louvor à Guiné Equatorial, ao iogurte, a Simón Bolívar, ao "cacau é show" e até mesmo, pasme o leitor, a Itanhaém.
Ainda assim, não consigo deixar de me impressionar com a obsessão dos carnavalescos com a África. Eles passam o ano todo assistindo série americana na TV. Quando podem viajar para fora do Brasil nas férias, correm para Nova York e para a torre Eiffel. Mal sabem apontar o Zimbábue no mapa. Mas, na hora de criar o samba-enredo, só dá "mãe África".
"A descoberta do clarinete por Mozart foi uma contribuição maior do que toda África nos deu até hoje", dizia Paulo Francis. Podemos ir mais longe em se tratando de um país específico. A última temporada de "Malhação" foi uma contribuição maior que todo o Zimbábue nos deu até hoje.
O Zimbábue é um dos poucos países do mundo onde a expectativa de vida caiu nas últimas décadas. Passou de 61 anos em 1987 para 42 em 2003 —o índice voltou a subir e, em 2012, chegou a 58 anos, segundo o Banco Mundial. Milhares de zimbabuanos (dei um Google para descobrir o gentílico do Zimbábue) morrem todos os anos de Aids e malnutrição.
Em 2009, o governo desistiu de ter uma moeda nacional e deixou os moradores adotarem o dólar. É que a inflação havia ultrapassado 230 milhões por cento. Nos anos 1990, depois de uma reforma agrária que confiscou a terra de colonos brancos e asiáticos, a produção agrícola despencou. "Terra abençoada", sério mesmo, Acadêmicos do Tatuapé?
O samba-enredo da escola fala em "lição para o mundo, tolerância, paz e amor" vinda do Zimbábue ou da África em geral. Mas peraí: de 55 países africanos, 34 proíbem a homossexualidade, alguns com pena de morte. O socialista Robert Mugabe, líder do Zimbábue há 36 anos, diz que os gays são repugnantes e "degradam a dignidade humana". Também persegue opositores e frauda eleições.
Não que a África não mereça atenção e grandes obras. Os livros de Mia Couto ou V.S. Naipaul encantam qualquer um ao contar a história recente da África e o mal que revoluções disseminaram por ali. Mas parece que o samba-enredo da Acadêmicos de Tatuapé fala de outro país, outro continente. "Alegria", "tolerância" e "paz" não combinam muito bem com Zimbábue.