quarta-feira, 15 de março de 2017

Roberto DaMatta: "Um drama etnológico"

O Globo

O rito de passagem havia removido o orgulho e o ódio dos seus corações


‘Quando eu era professor do Museu Geral”, contou-me fumando seu inseparável charuto o velho e sábio antropologista Felisberto Pimenta, “participei do exame de promoção a professor titular de Tribuno Lins. Naquela época, ele tinha uns 50 anos, era tímido mas decidido, competente e, como você verá, muito sagaz. Bem acima da banalidade nacional. 

Era tido como velho, mas hoje seria uma criança porque a velhice não está no tempo, mas na ‘cabeça’, como diz a nossa imbecilidade digital”. E o professor soltou um vulcão de fumaça na minha cara.

“Dos cinco professores examinadores”, continuou, “o doutor Sinfrônio Frazão era durão. Criticava todo mundo, mas não conseguia escrever uma linha. Seu sadismo não permitia que ele distinguisse examinar de humilhar. Era um materialista radical capaz de reprovar o que achava, mesmo sem saber, ser um trabalho simbolista, culturalista ou idealista. Na banca estava também a professora doutora Paulina Pavão, uma poliglota que sabia tudo, menos sair de si mesma. Os outros examinadores eram normais. Incapazes de matar uma mosca, como diziam abertamente Sinfrônio e Paulina com abusivo sarcasmo."

“A banca foi cordialmente instalada pelo elegante doutor Leonardo Junqueira, e logo revelou-se por inteiro a ojeriza que o trabalho de Tribuno Lins causara em Sinfrônio e Paulina. ‘Não tem valor, nem originalidade! É muito simbolismo; muita fumaça e pouco fogo’, dizia o primeiro; enquanto a segunda chamava-o de lixo! Era lamentável...”, rememorava o velho Felisberto, tragando o seu interminável charuto.

“Fizemos as avaliações! A excelência de Tribuno não impediu a má-fé dos colegas. Vamos ver a conferência final. Nela, ele se estrepa!”, disseram os dois do contra. Diante disso, eu rompi com o regimento e decidi falar com Tribuno.”

“Num intervalo de um dos 30 ou 50 cafezinhos, disse francamente ao rapaz que sua sorte estava selada. Sinfrônio o reprovaria por antipatia teórica; Paulina, por inveja. O plano, entreguei sem papas na língua, é reprovar a conferência e, com isso, anular o exame usando a letra H, da alínea J, do parágrafo 12 dos Estatutos Acadêmicos Gerais.”

“Tribuno ouviu e respondeu-me sem piscar: ‘Pode ser. Eu vou mudar tudo’”.
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“Na sala repleta de mestres e alunos entendidos de Sociologia comparativa", prosseguiu Felisberto, “foi dada a palavra ao candidato que, calmamente, iniciou sua conferência”:
“Como sabemos, no coletivo Brasa-Bela, os rituais de iniciação masculinos são extremamente cruéis. Implicam em ablação do prepúcio, em lutas corporais e corridas, além de jejum e dolorosas escarificações no tronco e nas pernas. Mas”, continuava Tribuno, “um noviço convertido ao cristianismo entrou em desespero e fugiu no exato momento em que deveria realizar o teste mais importante: a prova do formigueiro”.

O candidato proferiu a frase, e eu percebi que nos rostos de Sinfrônio e Paulina, seus inimigos intelectuais, fulgurava surpresa.

“O jovem", disse, dobrando calmo mais uma página, o candidato conferencista, “foge com a intenção de tomar o santuário na casa do missionário local. Ali encontraria repúdio a um ritual pagão. A esposa do missionário, porém, desencantada de tanta cegueira diante do pavor causado pela força do simbolismo humano, admite-o contra a vontade do marido. Isso feito, marido e mulher têm uma violenta discussão na frente do fugitivo, que, apavorado, assiste ao inesperado: o missionário que pregava amor e perdão aparece-lhe possuído pelo ódio. Um sentimento humano abominável que os ‘ritos de passagem’ objetivavam precisamente inibir e controlar. Passada a discussão, entretanto, em plena madrugada, a mulher do missionário tem um acesso de melancolia e tenta se matar. Outra surpresa para o nativo-noviço, que esperava serem os ‘cristãos’ mais coerentes com suas crenças. Finalmente, quando raia o sol, o noviço retorna para seu povo, pedindo para ser reiniciado, convicto de que sua sociedade era mais humana no tratamento dos desencontros.”

“Ele havia percebido”, ponderou Tribuno, olhando suas notas, “que se tudo é arbitrário, então era melhor ficar com a sabedoria dos seus ancestrais. Mas seu gesto é rechaçado pelos anciãos, que o expulsam da tribo.”

“Agora, sem ser adulto ou criança, sem poder assumir um papel nem dentro ou fora da tribo, o rapaz”, arremata o candidato olhando para o silente, “anda bêbado pelas ruas de Amazonópolis. De quando em vez, pronuncia algo como rituais, coragem, covardia e dever...”

Terminada a conferência, o professor Sinfrônio e a doutora Paulina tinham os olhos cheios de lágrimas. O rito de passagem havia removido o orgulho e o ódio dos seus corações.

“Mas, mesmo assim”, concluiu o velho Felisberto, “e, quem sabe, precisamente por tudo isso, o candidato foi reprovado!”