segunda-feira, 27 de março de 2017

"Previdência, pragmatismo e justiça"

GUSTAVO BINENBOJM - O Globo

Um sistema inviável será sempre intrinsecamente injusto porque condenará a atual e futuras gerações ao desamparo, sem seguro social diante das vicissitudes da doença


Os argumentos apresentados em justificativa à reforma da Previdência — não apenas esta, mas qualquer reforma de sistemas previdenciários — costumam gravitar em torno de razões pragmáticas. Com efeito, os números falam por si: enquanto a longevidade dos atuais e futuros aposentados aumenta, o número de pessoas economicamente ativas não cresce na mesma proporção e, desse jeito, as contas não fecham. Adiar a idade mínima para a aposentação, ampliar o tempo de contribuição exigido, reduzir assimetrias entre categorias privilegiadas e trabalhadores comuns têm sido medidas adotadas pelo mundo afora para que o sistema previdenciário não quebre.

Por evidente, as razões pragmáticas são muito relevantes. Quando o Direito vira as costas para a realidade, a realidade vira as costas para o Direito. Um sistema inviável será sempre intrinsecamente injusto porque condenará a atual e as futuras gerações ao desamparo, sem qualquer seguro social diante das vicissitudes da doença e da senectude. Os cálculos atuariais importam não porque têm valor para os especialistas em finanças públicas, mas porque representam a sustentabilidade concreta do modelo de seguridade ao longo do tempo. Por outro lado, o equilíbrio nas contas da Previdência também interessa ao desenvolvimento econômico e social, na medida em que recursos de outras fontes deixam de ser aplicados em educação, saúde e infraestrutura para custear os benefícios, isso para não falar no efeito sistêmico deletério de um déficit público crescente e sem adequado equacionamento.

Mas, a par das razões pragmáticas, há também razões de justiça que fundamentam a reforma da Previdência. Continuar com os parâmetros antigos de aposentadoria significa, do ponto de vista prático, permitir que uma geração — a atual — consuma todos os recursos do sistema até o seu efetivo exaurimento, condenando as gerações futuras, que contribuíram ao longo de toda a vida, a ver navios. O princípio de justiça previdenciária aplicável aqui é o mesmo que inspira o direito ambiental: preservar a biodiversidade, os recursos naturais e o meio ambiente hígido é um dever jurídico imposto à nossa geração em favor de nossos filhos e netos. Eles são nossos credores, tanto no plano da natureza como no da riqueza social.

Outro argumento de justiça diz respeito às diferenças significativas ainda existentes entre os regimes previdenciários de diferentes categorias de servidores públicos, e entre estes e os trabalhadores da iniciativa privada. Por mais que a cantilena de alguns descontentes insista em tentar justificar seus privilégios, a realidade dos números evidencia que a maioria trabalha e paga para sustentar as vantagens comparativas de categorias específicas. O argumento moral de justiça fiscal deve ser levado ao debate público, sem temor de despertar a ira de corporações civis ou militares, pois a democracia não pode ser refém dos interesses rentistas de grupos ou facções.

Por razões históricas, os principais elementos definidores dos nossos regimes de previdência foram alocados na Constituição. Em virtude dessa distorção, qualquer reforma da Previdência no Brasil passa, naturalmente, pela reforma da própria Constituição. 

Paciência: nenhuma Constituição é, nem pode ser interpretada, como um pacto suicida, que condene o país e as futuras gerações à bancarrota. Há fórmulas e regras de transição que podem ser usadas para preservar direitos adquiridos e expectativas legítimas daqueles já contribuintes há muito tempo. Afinal, por mais impopular que possa ser, a reforma da Previdência não é apenas um problema pragmático de finanças públicas, mas também uma genuína questão de justiça.

Gustavo Binenbojm é professor da Faculdade de Direito da Uerj