Leamsy Salazar Villafaña chegou a Washington no último fim de semana. Poderia ter sido confundido com mais um turista procedente de Madri, se não estivesse desembarcando de um avião da agência antidrogas americana (DEA), devidamente escoltado. O jornalista Emili J. Blasco, correspondente do jornal espanhol ABC, divulgou a informação na terça-feira.
Já se passaram 153 meses desde a quinta-feira 11 de abril de 2002 quando o então tenente Salazar Villafaña foi homenageado pelo falecido líder venezuelano Hugo Chávez:
— Ele é humilde e um grande soldado da Infantaria da Marinha — disse o presidente ao celebrar, em cadeia nacional de televisão, seu resgate da prisão por um grupo de militares rebelados contra o golpe de estado. Muitos deles ficaram conosco — agradeceu, indicando o tenente naval como símbolo do seu controle sobre as tropas.
Na reconquista do Palácio Miraflores, foi ele quem apareceu agitando na varanda a bandeira nacional, sinalizando a vitória chavista para a multidão. Chávez o manteve na sua equipe de guarda-costas até à morte, em 2013.
Na divisão do espólio palaciano, Salazar Villafaña foi levado para chefiar a guarda pessoal de Diosdado Cabello, oficial com quem Chávez dividira a liderança de um golpe militar frustrado, em 1999. Ambos chegaram ao poder pelas urnas, dois anos depois. Atualmente, Cabello partilha o poder na Venezuela com o presidente Nicolás Maduro: é vice-presidente, dirige a Assembleia Nacional, detém o controle das maiores milícias chavistas de Caracas e é responsável pela indicação de parte do alto-comando das Forças Armadas.
O governo da Venezuela reagiu duramente à deserção de Salazar Villafaña: "Àqueles que traem a revolução", disse o presidente Maduro, "só podem esperar o inferno da solidão, da derrota, do isolamento, do repúdio de sua própria família e de todo um povo". A perspectiva de nos próximos dias o governo dos Estados inscrever Diosdado Cabello no topo da lista de mais procurados pelo FBI e pela Interpol se tornou "consistente" na definição de um porta-voz do Departamento de Estado.
Aparentemente, Salazar Villafaña denunciou o vice-presidente da Venezuela como chefe de uma quadrilha de militares narcotraficantes especializada em garantir logística do transporte de drogas, via Caribe, produzidas na Colômbia para o mercado americano.
O chefe da guarda pessoal de Cabello entrou nos EUA segunda-feira acompanhado da mulher, ex-funcionária graduada de bancos estatais venezuelanos, no papel de testemunha da promotoria em um processo aberto na Corte do Distrito Sul de Nova York contra uma quadrilha conhecida como "Los Soles". Na Venezuela esse nome remete ao emblema reservado para generais em seus uniformes de gala.
Além do vice-presidente, seu irmão José David Cabello, que é chefe da Receita, e o governador do estado Aragua, Tareck el Aissami. Supostamente, a quadrilha lavava dinheiro na petroleira estatal PDVSA, que na última década foi presidida por Rafael Ramírez, atual embaixador da Venezuela nas Nações Unidas.
Salazar Villafaña, 51 anos, não é um solitário delator que desertou do epicentro do chavismo. Suas denúncias complementam as feitas por Rafael Isea, 47 anos, ex-deputado nacional e governador de Aragua, que presidiu o Banco de Desenvolvimento Econômico e Social (Bandes) e foi ministro das Finanças de Hugo Chávez. E também os depoimentos dados pelo juiz Eladio Ramón Aponte Aponte, 64 anos, que em em 2012 trocou a presidência da Suprema Corte da Venezuela pela proteção da agência americana especializada na guerra ao narcotráfico.
Isea foi um dos principais aliados do falecido Chávez. Companheiros de farda, conspiraram desde Academia Militar de Caracas até à morte do líder. Isea desembarcou com a família em Washington, em meados de 2013. Chegou em avião privado, num vôo procedente da República Dominicana que, segundo o repórter Antonio Delgado, do El Nuevo Herald, foi pago pela DEA. Optou por viver sob a proteção de Washington na condição de arquivo-vivo, com especialização em lavagem de dinheiro, sobretudo a do narcotráfico.
Ele tem larga experiência no ramo. Já foi denunciado, até pela na agência anticorrupção da ONU, por operar uma espécie de máquina de produção de dólares durante a era chavista. Como banqueiro estatal e ministro das Finanças, Isea manipulou um título venezuelano (Notas Estruturadas) para troca de bônus de dívidas externas classificados como lixo da Argentina, Equador, Bielorrussia, entre outros.
Por esse canal financeiro estima-se que transitaram cerca de US$ 10 bilhões, com elevada diferença de cotação cambial. O mecanismo levou a Venezuela a comprar títulos externos dos parceiros pagando a cotação média do mercado paralelo (5.800 bolívares por dólar) ao mesmo tempo em que vendia os seus papéis pela cotação média do mercado oficial (2.150 bolívares).
Entre os intermediários esteve o Banco Lehman Brothers, aquele cuja quebra jogou os EUA na maior crise financeira dos últimos 80 anos.
Isea largou tudo quando achou que seria morto em Caracas.
O juiz Aponte também se sentiu ameaçado e resolveu fugir. Fez um acordo judicial, confessou cumplicidade com uma rede sul-americana de traficantes de cocaína e admitiu ter manipulado processos judiciais para favorecê-los em negócios que — segundo contou — eram partilhados com alguns dos mais graduados funcionários civis e militares do governo Chávez.
Citou especificamente: o atual presidente da Assembleia Nacional, deputado Diosdado Cabello; o ex-ministro da Defesa, general de brigada Henry de Jesus Rangel Silva; o ex-comandante da IVª. Divisão Blindada do Exército, Clíver Alcalá; e, o ex-vice-ministro de Segurança Interna e diretor do Escritório Nacional Antidrogas, Néstor Luis Reverol.
Há anos os EUA avançam no cerco a funcionários chavistas, supostamente envolvidos com narcotráfico. Já bloquearam contas bancárias e bens de Henry de Jesus Rangel Silva (atual governador do Estado de Trujillo), Ramón Emilio Rodríguez Chacín (governador de Guárico) e do ex-diretor da seção de Inteligência Militar da Venezuela, Hugo Armando Carvajal Barrios.
Esses estão claramente identificados na listagem da agência de controle de investimentos estrangeiros (OFAC, na sigla em inglês), subordinada ao Departamento do Tesouro, como pessoas vinculadas ao narcotráfico.
Em comum, todos têm uma biografia construída na esteira da liderança de Chávez, e com papel destacado na luta interna em que ameaça naufragar a presidência de Nicolás Maduro. Já foram bons companheiros no Palácio Miraflores, a sede do poder em Caracas.