terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

'A instrumentalização da caridade', por Rodrigo Constantino

 As ajudas humanitárias estatais eram, na verdade, uma forma de transferir dinheiro dos pobres dos países ricos ocidentais para os ricos (e muitas vezes corruptos) dos países pobres


Foto: Revista Oeste/IA


A visão romântica de um Estado benevolente — ao contrário da mais realista e cética, que o enxerga como um “mal necessário” — costuma partir de uma postura insustentável: quando os intervencionistas pregam mais Estado, eles assumem que a intervenção será realizada por seres clarividentes e abnegados. Esquecem que será colocada em prática por seres humanos imperfeitos, limitados, sujeitos às paixões humanas. 

“Qualquer recomendação de natureza normativa deve ser avaliada sob uma análise do comportamento dos indivíduos com base em seus reais defeitos ou virtudes, assim como motivações”, escrevem André Azevedo Alves e José Manuel Moreira na obra O Que É a Escolha Pública?, livro português que serve como excelente introdução ao pensamento da Escola de Virgínia. 

É preciso lembrar que o Estado não age, apenas indivíduos agem! Erro muito comum dos intervencionistas é o que chamamos de “falácia do Nirvana”, que consiste em usar uma utopia, uma fantasia imaginária qualquer, para combater uma realidade imperfeita. Como exemplos temos o pacifismo, o socialismo, o ambientalismo etc. 

O ataque ocorre da Torre de Marfim: é uma postura confortável (e covarde) de quem não deseja realmente debater quais são as melhores alternativas concretas para os fins desejáveis, e sim posar de “puro” contra tudo e todos que existem. Isso leva ao monopólio das virtudes: somente quem defende mais Estado quer acabar com a fome, a miséria, as injustiças etc. Somente o pacifista é contra a guerra e a violência. Somente o ambientalista é contra a poluição ou o “aquecimento global”. Condena-se o adversário ideológico com base em sua suposta falta de sensibilidade, por seus “interesses mesquinhos”. 

Mas assumem-se duas personalidades radicalmente opostas para as pessoas: no processo de mercado, são guiadas pelo egoísmo; na política, misteriosamente seriam dominadas pelo interesse público. Faz sentido?


Para os intervencionistas, somente o ambientalista é contra a poluição ou o “aquecimento global” | Foto: Shutterstock 


No fundo, a via política é apenas uma forma diferente de decisão coletiva a partir dos mesmos indivíduos. “Quem estuda o fenômeno político deve partir da mesma concepção realista da natureza humana que julga apropriado aplicar aos restantes domínios da ação em sociedade”, dizem os autores. As questões fundamentais para quem deseja um debate honesto e sério, portanto, são: qual é a melhor forma de alocar recursos escassos? Qual é o melhor processo que garante tanto a liberdade individual como os resultados mais eficientes do ponto de vista social? 

Surge o primeiro grande obstáculo dos coletivistas: como avaliar o “interesse geral” na prática, já que preferências são subjetivas? Outro dilema: a maioria tem o direito de impor sua visão contra as minorias? Qual método — o econômico (trocas voluntárias no mercado) ou o político (coerção democrática) — preserva mais as minorias?

A contradição dos intervencionistas parece evidente: assumir que não devemos confiar nos indivíduos para governarem a si próprios, mas achar que têm capacidade de governar os outros. Defender o sufrágio universal e o paternalismo estatal é contraditório, e resulta da arrogante visão elitista platônica de “reis-filósofos”, a crença no “déspota esclarecido” (que paradoxalmente será escolhido, na democracia, pela multidão pouco esclarecida, a menos que a escolha seja por um conservador, o que seria “antidemocrático” para essa turma contraditória).


Uma mulher protesta contra Elon Musk do lado de fora do prédio da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID) | Foto: Reuters/Kevin Lamarque

O problema dos intervencionistas é nunca se colocar do outro lado da mesa, do lado que sofre as consequências e os custos da intervenção. Todo intervencionista se imagina como o próprio déspota esclarecido, e costuma enxergar a sociedade como um tabuleiro de xadrez, em que indivíduos dão lugar a peças sacrificáveis pelo objetivo “maior”, que é, no caso, o “interesse do Estado” (isto é, o seu próprio).

Entre as consequências práticas desse modelo estatizante, temos o “rent seeking” (grupos organizados usam o Estado para criar barreiras à concorrência e se apropriar de lucros excedentes). No longo prazo, o principal efeito disso é desviar energia criativa da produção para o “investimento” em lobby político, em busca de privilégios, subsídios, barreiras protecionistas, reservas de mercado ou pura corrupção e jogo de poder mesmo. 

Toda essa longa digressão nos leva ao escândalo envolvendo a USAID, que Elon Musk e seu DOGE expuseram. Gastos absurdos, com claro intuito ideológico, com fins partidários ou totalmente descolados do que se poderia chamar de interesses nacionais: tudo isso parece que era a regra no destino de bilhões e bilhões de recursos da entidade. Em vez de agradecer pela maior transparência, a elite democrata reagiu de forma insana, confessando seu crime ao atirar no mensageiro. 

Partiu com tudo para cima de Musk, mas não quer falar daquilo que ele trouxe à tona. Nada disso é novidade para quem conhece o trabalho de Lord Peter Thomas Bauer, que mostrou como as ajudas humanitárias estatais eram, na verdade, uma forma de transferir dinheiro dos pobres dos países ricos ocidentais para os ricos (e muitas vezes corruptos) dos países pobres. Mike Benz, que vem investigando a USAID faz tempo, afirmou com todas as letras: não fossem seus recursos irrigando ONGs suspeitas, como a de Felipe Neto, Bolsonaro ainda seria presidente do Brasil e a internet seria livre no país. 

Ou seja, o governo Joe Biden interferiu diretamente em nossas eleições, o que muitos já desconfiavam. A esquerda, pelo visto, não condena esse tipo de intervenção. Deve ser o “imperialismo do bem”… Instituições supranacionais como a USAID podem até ter nascido com ótimas intenções. Desde a Doutrina Monroe e a visão globalista de Woodrow Wilson, os Estados Unidos buscam “exportar democracia” mundo afora, impor os valores democratas ou “liberais”. Mas o inferno está cheio de boas intenções, e o que começou de um jeito pode acabar capturado por interesses privados e se transformar num monstro.



Instituições supranacionais como a USAID podem até ter nascido com ótimas intenções, mas o que começou de um jeito pode acabar capturado por interesses privados e se transformar num monstro | Foto: Reuters/Kent Nishimura 

A elite burocrata quer poder sem voto. Criou-se o deep state, com muitos interesses obscuros. Falta accountability, ou seja, transparência perante o dono do dinheiro e do poder na teoria, o próprio povo. Daí o desespero dessas elites corrompidas com o fenômeno do nacionalpopulismo de direita: Donald Trump e sua turma chegaram para acabar com essa farra, drenar o pântano em Washington. E parecem dispostos a cumprir mesmo a promessa de campanha que os elegeu de forma inquestionável. A ajuda humanitária é algo muito importante. 

O cristianismo prega desde sempre a caridade. Mas esta, para ter valor moral, deve ser voluntária, do indivíduo, não por meio de coerção estatal que acaba desviando-se do foco original. Basta utilizar meu próprio exemplo para ilustrar o perigo: descubro que os impostos que paguei nos últimos anos nos Estados Unidos serviram para o sistema me censurar no Brasil. Ou seja, eu paguei por minha própria censura!



Revista Oeste