A despeito de seu repúdio por Trump, Magnoli tinha razão quanto ao discurso de posse, ao passo que Flávia Oliveira amputou flagrantemente a realidade
“Todos os povos do mundo são humanos e há apenas uma definição para todos os humanos e para cada um deles: são criaturas racionais. Portanto, todas as raças da humanidade são uma só.” (Frei Bartolomeu de Las Casas, Brevíssima Relação da Destruição das Índias, 1552)
N a GloboNews, analisando o discurso de posse do novo presidente americano, dois antitrumpistas entraram em rota de colisão. De um lado, Flávia Oliveira, uma militante radical da esquerda identitária, e particularmente da ideologia neomarxista autointitulada Teoria Crítica da Raça (TCR), denunciava o conteúdo “supremacista branco” da fala de Trump. Do outro lado, Demétrio Magnoli, um ex-trotskista sabidamente crítico da esquerda identitária e avesso à TCR, questionava a interpretação da colega de bancada. E assim se criou a cizânia no seio do antitrumpismo midiático.
“Eu não vi, a Flávia disse que viu, eu não vi nenhum trecho do discurso de Trump que possa ser definido como supremacista branco. Eu não vi isso. Ouvi com atenção o discurso de posse dele e não vi esse trecho, devo ter perdido isso” — cutucou Magnoli.
Ao que respondeu Flávia: “Só perdeu se não compreendeu o sentido do texto, Demétrio. Me parece bastante clara a indicação supremacista. Afinal de contas, quem se beneficia das políticas de diversidade senão os negros, senão as mulheres, senão os indígenas e os descendentes dos povos originários, os hispânicos ou latinos, senão homens e mulheres trans? Obviamente, beneficia um grupo, que é o grupo que Donald Trump historicamente representa e adula, o dos homens brancos héteros.”
Tendo recebido a resposta-padrão esperada de todo militante identitário, Magnoli voltou à carga: “Aí eu discordo completamente de você, Flávia. A conclusão disso aí que você falou é que qualquer liderança política que seja contra políticas identitárias será um supremacista branco. Não vai sobrar muita gente. É complicado isso.”
Aparentemente irritada pela postura de mansplaining e white fragility do colega, Flávia entregou-se já sem pejo, e sequer pretensão de continuar parecendo jornalista, ao uso de jargão político-ideológico e chantagens do moralismo politicamente correto:
“Não tem sobrado muita gente mesmo, Demétrio. Essa é a realidade. A onda conservadora com toques de neonazismo, neofascismo, ela se sedimenta. Você é um analista internacional, sabe disso, dos pensamentos supremacistas.”
E assim, fincando o pé, cada qual dos antitrumpistas em desacordo permaneceu em sua posição inicial. Mas, para o espectador, não foi difícil perceber que, a despeito de seu repúdio por Trump, Magnoli tinha razão quanto ao objeto em debate — o discurso de posse —, ao passo que Flávia amputou flagrantemente a realidade, a fim de acomodá-la na Cama de Procusto de sua ideologia.
No entanto, a realidade é como Teseu: sempre sai vitoriosa. Considerando-se as palavras realmente ditas por Donald Trump, vê-se que ele garantiu, sim, cumprir a promessa eleitoral de acabar com as políticas identitárias nos EUA — uma promessa que não o impediu de ter sido o Republicano mais bem votado da história entre negros, latinos e mulheres, fatias populacionais que a militante identitária da GloboNews acredita representar. Mas há também um trecho muito relevante do discurso que Flávia não comentou, quando o presidente empossado menciona o célebre sonho de Martin Luther King, o maior símbolo da luta contra o racismo no país. Nas palavras de Trump:
“Às comunidades negra e hispânica, quero agradecer pela tremenda demonstração de amor e confiança que vocês me mostraram com seu voto. Estabelecemos recordes e não vou esquecer. Ouvi suas vozes na campanha e estou ansioso para trabalhar com vocês nos próximos anos. Hoje é o Dia de Martin Luther King, e sua homenagem — será uma grande honra —, mas, em sua homenagem [sic], lutaremos juntos para tornar seu sonho realidade. Faremos seu sonho se tornar realidade. A unidade nacional está retornando à América, e a confiança e o orgulho estão crescendo como nunca antes.”
Nunca é demais recordar a substância do sonho civilizacional do reverendo King, um sonho que também era de unidade nacional e de confiança no futuro de uma nação temente a Deus: “Eu tenho um sonho que meus quatro pequenos filhos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter (…) Eu tenho um sonho que (…) um dia, bem lá no Alabama, meninos negros e meninas negras possam dar-se as mãos com meninos brancos e meninas brancas, como irmãs e irmãos.”
Apesar de um ser negro e o outro branco, King e Trump têm, no mínimo, como no velho slogan de marketing dos cigarros Free, alguma coisa em comum: o humanismo universalista herdado de sua fé cristã. Segundo essa concepção essencialmente antirracialista, a cor da pele de uma pessoa — ou dos olhos, o formato do nariz, a textura do cabelo, em suma, todo o conjunto de seus traços fenotípicos — não deveria importar, e sim o conteúdo de seu caráter.
A visão de Trump e King sobre a unidade antropológica e espiritual dos EUA insere-se numa longa tradição autointerpretativa, segundo a qual a nação foi fundada sob a Divina Providência. No excelente On Two Wings: Humble Faith and Common Sense at the American Founding (“Em duas asas: fé humilde e senso comum na fundação da América”, em tradução livre), por exemplo, o filósofo Michael Novak fala da autocompreensão dos “revolucionários” americanos como uma “metafísica da Bíblia hebraica”, que lhes infundiu a certeza da necessidade de instituírem uma nação independente e autogovernada, única e exclusivamente submetida à vontade de Deus. Não é por acaso que, certa vez, G. K. Chesterton tenha chegado a caracterizar os Estados Unidos como “uma nação com a alma de uma igreja”.
Dentro dessa autocompreensão compartilhada por Luther King, Trump e tantos outros patriotas americanos convictos da excepcionalidade de seu país, uma ideia sempre se impôs: a do antirracismo. Longe de circunstancial, essa ideia é intrínseca à cosmovisão cristã, afirmando-se nos discursos de um sem-número de pensadores cristãos ao longo da história, tanto sacerdotes quanto leigos, e consagrando-se em diversos documentos oficiais da Igreja, verdadeiros monumentos civilizatórios.
Em sua carta apostólica Octogesima Adveniens, por exemplo, o papa São Paulo VI condenou duramente o que chamou de “discriminação racial”. Em suas palavras:
“Os membros da humanidade compartilham a mesma natureza e, por consequência, a mesma dignidade, com os mesmos direitos e os mesmos deveres fundamentais, assim como o mesmo destino sobrenatural. Dentro da mesma pátria comum, todos devem ser iguais perante a lei, poder encontrar um acesso igual à vida econômica, cultural, cívica ou social, e beneficiar-se de uma equitativa repartição da riqueza nacional.”
Poder-se-ia dizer que, para se chegar a uma definição adequada de racismo, basta negar tudo o que foi dito pelo papa. O racismo é a crença de que nem todas as raças têm os mesmos direitos e deveres básicos e que, portanto, nem todas deveriam ser iguais perante a lei, participar da vida econômica, cultural, cívica e social, ou beneficiar-se de uma repartição justa da riqueza nacional. Em resumo, considerando todos esses aspectos, o racismo consiste em, sempre alegando uma injustiça original que tudo justifica, privilegiar certas “raças” em desfavor de outras.
Em outro importante documento da Igreja, a encíclica Mit brennender Sorge, de 1937, o papa Pio XI condenou as políticas raciais identitárias dos nazistas nos seguintes termos:
“Quem exalta a raça, ou o povo, ou o Estado, ou uma forma particular de Estado, ou os depositários do poder, ou qualquer outro valor fundamental da comunidade humana — por mais necessária e honrosa que seja sua função nas coisas mundanas —, quem eleva essas noções acima de seu valor-padrão e as diviniza a um nível idólatra distorce e perverte uma ordem do mundo planejada e criada por Deus.”
E o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, publicado durante o pontificado de São João Paulo II, resume a condenação da Igreja ao racismo, fundamentada na antropologia filosófica e na escatologia cristãs presentes nos Evangelhos. Como se lê no parágrafo 144 do documento:
“’Deus não faz distinção de pessoas’ (At 10,34; cf. Rm 2,11; Gal 2, 6; Ef 6, 9), pois todos os homens têm a mesma dignidade de criaturas à Sua imagem e semelhança.
A Encarnação do Filho de Deus manifesta a igualdade de todas as pessoas quanto à dignidade: ‘Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus’ (Gal 3,28; cf. Rm 10,12; 1 Cor 12,13; Col 3,11). Uma vez que no rosto de cada homem resplandece algo da glória de Deus, a dignidade de cada homem diante de Deus é o fundamento da dignidade do homem perante os outros homens. Este é o fundamento último da radical igualdade e fraternidade entre os homens, independentemente da sua raça, nação, sexo, origem, cultura, classe.”
Nota-se que a condenação cristã ao racismo se fundamenta em dois pilares: a natureza e a graça. Por um lado, a Igreja afirma a origem (“natural”) comum de toda a humanidade, criada por Deus. Por outro, projeta o destino comum (“sobrenatural”) dessa mesma humanidade, reunida na Eternidade junto a Deus. Daí que ela seja mais contundente e profunda do que a crítica secular ao racismo esposada por autores como Magnoli, que rejeitam em bases meramente naturalistas, antropológicas e biológicas as alegações racialistas sobre diferenças essenciais de cognição, caráter e comportamento entre os membros da espécie humana, denunciando (corretamente, sem dúvida) o caráter anticientífico, mitificado e politicamente interessado do próprio conceito de “raça”.
Da perspectiva cristã, todavia, é insuficiente abordar o racismo apenas nesse nível. Como deixam claro, por exemplo, os trechos dos documentos católicos supracitados, a fonte de nossa dignidade comum não reside principalmente no corpo, tal como compreendido pela ciência, mas na alma, a qual, como também ensina o Catecismo da Igreja Católica (§ 363), designa “o que há de mais íntimo no homem e de maior valor na sua pessoa, aquilo que particularmente faz dele imagem de Deus: ‘alma’ significa o princípio espiritual no homem”.
Em sua dimensão natural, os homens foram criados como seres racionais capazes de compreensão e livre-arbítrio. Essa natureza humana comum faz com que os direitos e os deveres sejam os mesmos para todos os seres humanos, independentemente da “raça”.
Por outro lado, a graça foi também oferecida a todos os seres humanos, candidatos potenciais, de novo independentemente de raça, a conquistar sua cidadania no Céu, como diria Santo Agostinho. Reside aí, tanto pela via da natureza quanto pela da graça, o duplo alicerce cristão para a condenação de toda forma de racismo. Por óbvio, Flávia Oliveira esposa uma cosmovisão inteiramente diferente. Ela não é cristã, mas adepta do Candomblé, religião que ela concebe de maneira fortemente terrestrializada e não universalista, como afirmação, não de uma unidade espiritual entre os seres humanos, mas de uma determinada identidade étnica, cultural e política, imprecisamente descrita como “afrodescendente”. Temos aí a religião como veículo de orgulho político-identitário. Uma espécie de teologia da “libertação”, não da salvação.
“É nossa história, é nossa ancestralidade. A gente é de uma família, de uma linhagem, que pertence à religiosidade de matriz africana” — diz Flávia sobre a sua adesão ao Candomblé, interpretada como um modo de resistir ao racismo. “Porque tem muito a ver com a afrodescendência, está também na raiz de um racismo que é estrutural no Brasil e que vem da colonização, daquele modelo que coisificou os corpos negros” — complementa, num vocabulário herdado do pósestruturalismo francês (que não poderia ser menos afrodescendente).
Nota-se que, mesmo em relação à sua própria religiosidade, algo que deveria ser eminentemente pessoal, Flávia adota uma postura coletivista. Com isso, demonstra ser uma adepta semiconsciente da Teoria Crítica da Raça (TCR), uma ideologia neomarxista que, se apresentando como “antirracista”, se revela, na verdade, como uma versão renovada de racismo, uma espécie de “racismo do bem”. Eis, a propósito, uma lição que qualquer estudioso principiante de ciência política deveria saber: não se pode compreender a natureza de um movimento político com base apenas em sua definição dicionarizada, muito menos de seus slogans autopromocionais. A TCR tem tanto a ver com combate ao racismo quanto o PT tem a ver com trabalhadores, a Coreia do Norte (República Popular Democrática da Coreia) com democracia ou o PCC (Primeiro Comando da Capital) com “paz, justiça e liberdade”.
Digo que a TCR é uma ideologia neomarxista porque ela herda da doutrina de Marx, no mínimo, este pressuposto fundamental: a determinação material da consciência. Assim, no marxismo ortodoxo, as ideias de uma pessoa seriam determinadas por sua posição respectiva na sociedade de classes. Um burguês, por exemplo, esposaria necessariamente ideias e valores capitalistas. Um proletário, por sua vez, defenderia necessariamente ideias e valores socialistas. No caso da TCR, a “classe” é substituída pela “raça”, de modo que um “negro” (ou seja, alguém com um determinado conjunto de traços fenotípicos) pensa necessariamente como “negro”; um “branco”, como “branco”; e assim por diante. Se, no marxismo original, a condição material de “classe” determinava a consciência das pessoas, a TCR afirma que essa consciência é determinada por sua condição material de “raça”.
Eis por que Flávia Oliveira seja incapaz de admitir que Donald Trump
e Martin Luther King possam ter ideias similares sobre a sociedade
americana, bem como de notar que a ideologia neomarxista por ela
endossada tem como precursor um contingente de intelectuais
majoritariamente brancos (e homens, para piorar). Eis por que,
também, Flávia confunda as autoproclamadas políticas “de
diversidade” com a diversidade ela mesma, imaginando que pessoas
“não brancas” ou “não masculinas” tenham necessariamente que
concordar com essas políticas, sob pena de se tornarem
“supremacistas brancos” ou, no mínimo, “capitães do mato” (“uncle
Tom”, como se diz em inglês) a seu serviço.
Referindo-se criticamente aos seus pares de esquerda, o jornalista americano Nicholas Kristof escreveu certa vez no New York Times: “Aceitamos muito bem as pessoas que não se parecem conosco, com a condição de que pensem como nós”. Também Flávia e seus companheiros de ideologia racialista celebram diferenças acidentais e de superfície (fenotípicas, de gênero ou sexuais) apenas para melhor promover a homogeneidade total de opinião. Mas dessa ideologia falaremos com mais profundidade no próximo artigo.
Revista Oeste