Depois de empatar com Deus, Lula volta a duelar com Cristo
Daqui a muitos anos, o Brasil da primeira q1uadra do Século XXI continuará assombrando os interessados em decifrar o enigma: o que teria levado o país que nunca foi para principiantes a transformar-se num caso que merece ser examinado por um pelotão multinacional de historiadores, psiquiatras, cientistas políticos, antropólogos, pajés de tribos isoladas e especialistas em inteligência artificial, fora o resto. Exagero, dirão jornalistas estatizados, escritores inéditos e artistas dependentes de gordas esmolas federais e demais devotos da seita que tem num caso de polícia o seu único deus. Replico: até agora, é mais fácil descobrir quem somos, de onde viemos e para onde vamos do que explicar o comportamento de milhões de eleitores nos primeiros 25 anos do terceiro milênio.
O que teria induzido milhões de eleitores a acharem uma boa ideia entregar a Presidência da República, por oito anos seguidos, a um homem que nunca leu um livro nem sabe escrever? O que deu na telha da imensidão de gente que, atendendo à vontade do analfabeto funcional, topou substituí-lo por cinco anos e meio pela nulidade incapaz de juntar coisa com coisa? A luz no fim do túnel pareceu ter chegado em 2015 com a Operação Lava Jato: agora todos são iguais perante a lei, acreditaram os profissionais da esperança, até que a devassa das catacumbas chegou aos porões do Supremo Tribunal Federal. “É preciso estancar a sangria”, avisou o veterano meliante Romero Jucá. Um consórcio imediatamente formado por delinquentes espalhados pelos três Poderes fez muito mais que isso.
Cinco anos depois do início, vai chegando ao final previsivelmente repulsivo o mais longo e ousado faroeste à brasileira. Nessa deformação cafajeste do original americano, é o bandido que persegue o mocinho e os vilões acabam ganhando, com a cumplicidade ostensiva dos juízes da capital. O bando de facínoras engaiola xerifes e delegados, mantém sob estreita vigilância os suspeitos de honestidade, liberta todos os comparsas presos e assume oficialmente o controle do lugarejo. Caprichando na pose de defensores da lei e da ordem, passam a infernizar a vida dos homens de bem.
Se fosse o roteiro de um filme, seria até divertido acompanhar esse mundo pelo avesso. A luz no fim do túnel apareceria duas horas depois. Ocorre que essa espécie de faroeste apenas reproduz o que anda acontecendo no Brasil. Não há luz nenhuma no fim desse túnel inverossímil. O que se vê é o preto-graúna das togas que encobrem os protagonistas do enredo abjeto. Protegidos pela escuridão, as estrelas do elenco revogaram a Constituição, colocaram de joelhos um Congresso infestado de candidatos a julgamento no Pretório Excelso, transferiram um ladrão juramentado da cadeia para o palanque e fizeram o diabo na campanha eleitoral para garantir a vitória do expresidiário. Oficialmente, quem governa é o presidente Lula. Mas quem manda é a turma que proclamou com a discrição possível a ditadura do Judiciário.
Já condenado ao confinamento num punhado de linhas no capítulo brasileiro da História Universal da Infâmia, esse monstrengo vai atravessando a primeira infância sob os cuidados de bacharéis em Direito que foram parteiros, viraram babás e agora disputam o papel de Primeiro Regente. O Egrégio Plenário é quem prende (muito) e solta (de vez em quando), bate escanteio e cabeceia, faz o diabo, inventa chicanas e vê no povo brasileiro um bando de idiotas. Presidente da República pela terceira vez, Lula já é candidato a um quarto mandato. Aos olhos do país que pensa e presta, parece mentira. É só mais um milagre, acaba de confirmar o velho vigarista.
Nesta penúltima semana de janeiro, mais uma vez, ele se comparou a Jesus Cristo. Irritado com a ausência do governador mineiro Romeu Zema, Lula transformou a cerimônia que oficializaria o perdão de dívidas contraídas por governos estaduais com a União no comício de abertura da campanha eleitoral de 2026. Como pôde o adversário filiado ao Partido Novo dispensar-se até mesmo de um “muito obrigado” amplificado pelo serviço de som?, indignou-se. Era hora de aquecer a discurseira de botequim com a convocação de Cristo. “O que nós fizemos para os Estados que não pagavam as dívidas talvez só Jesus Cristo fizesse se ele concorresse à Presidência da República desse país.” Talvez, repita-se. Generosamente, o palanque ambulante admite que Cristo pode reprisar a proeza. Deu empate.
Lula venceu o duelo em julho de 2010, num comício em Garanhuns: “Se eu pudesse destacar uma imagem das facadas que levei, e eu pudesse tirar a camisa, o meu corpo estava mais estraçalhado do que o corpo de Jesus Cristo depois de tanta chibatada que ele levou”, gabouse. Perdeu em setembro de 2016, quando repetiu a comparação para livrar-se de outra enxurrada de denúncias. “Eu tenho uma história pública conhecida”, lembrou. “Eu acho que só ganha de mim no Brasil Jesus Cristo. Só.” A vingança viria em março de 2017, durante outro depoimento a um juiz engajado na Operação Lava Jato.
Primeiro perdeu a paciência, esgotada pela notícia de que figurava entre os alvejados por revelações feitas por Nestor Cerveró, ex-diretor da Petrobras, que fechara dias antes um acordo de delação premiada. “Doutor, se o senhor soubesse quanta gente usa o meu nome em vão, de vez em quando eu fico pensando pras pessoas lerem a Bíblia pra não usá tanto o meu nome em meu vão”, recitou. Nenhuma das incontáveis edições da Bíblia menciona o nome de Lula. Todas advertem que é Deus que não deve ter o nome invocado em vão. Mas a divindade de picadeiro jura que empatou com o Criador.
Lula parece achar que comparações desse tipo garantem a permanência no poder. Vai acabar chamando para a briga algum napoleão de hospício.
Revista Oeste