sexta-feira, 30 de abril de 2021

"O jogo do gigante", por Cristyan Costa

As manobras da China já alcançam sindicatos brasileiros, empresas europeias, escolas britânicas e a grande mídia 


Edição de arte Oeste: Leandro Rodrigues



No fim da década de 1980, o cientista político norte-americano Joseph Nye criou o termo soft power (poder suave) em alusão à capacidade de um país de influenciar outros por meio de instrumentos culturais e ideológicos. Por décadas, os Estados Unidos exerceram esse poder sobre o mundo ao exportar seu modo de vida. A China não é uma exceção. Mas a conduta do país asiático vem mostrando que mudou a estratégia do Partido Comunista (PCC) de interferir em outras nações, sobretudo com a chegada do coronavírus. Estamos falando de uma etapa além e mais perigosa: o chamado sharp power (poder afiado, ou agudo, em tradução livre), conhecido como a diplomacia da chantagem.

Trata-se do uso de meios autoritários e silenciosos com a finalidade de alcançar objetivos geopolíticos. Não se busca ganhar corações e mentes mas sim manipular e extorquir; distorcer e ocultar informações, conforme definiu o periódico norte-americano de política internacional Foreign Affairs. Em artigo publicado na Edição 2 da Revista Oeste, a jornalista Selma Santa Cruz observou: “A epidemia de coronavírus deu visibilidade a um fenômeno que tem passado quase despercebido, apesar de sua importância crítica: a expansão vertiginosa da presença chinesa no planeta, inclusive no Brasil, foco de interesse estratégico pela abundância de recursos naturais. A China ameaça a hegemonia dos EUA e joga pesado para promover seus interesses por toda parte.”

Segundo o mais recente estudo do Banco Mundial, o Produto Interno Bruto da China cresceu 1,9% em 2020 e, este ano, deve se expandir 8,2%. Já a economia global, de acordo com a instituição financeira, teve contração de 4,4% em 2020, a pior queda desde a Grande Depressão de 1930. “A China foi a única grande economia a registrar crescimento em 2020”, celebrou o secretário-geral do Partido Comunista da China, Xi Jinping, em pronunciamento no início deste ano. “Somos o primeiro país, entre as principais economias, a conseguir aumento do PIB, com a previsão de atingir patamar de 100 trilhões de iuanes no ano de 2020”, acrescentou o líder, referindo-se a soma superior a US$15 trilhões. “Sigamos adiante”, concluiu ele, certo de que se confirmarão as previsões segundo as quais a China se tornará a maior economia do mundo em 2028.

Tentáculos do Partido Comunista

A Global Data, consultoria de análise de dados, publicou em maio de 2020 um relatório preocupante, dando conta de que têm sido progressivamente elevados os investimentos de estatais chinesas em companhias ocidentais. O movimento se deu durante os primeiros meses da epidemia de coronavírus. De janeiro a abril de 2020, a China firmou 57 acordos de fusão e aquisição de empresas em Hong Kong, Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha, França, Canadá e Índia, ao custo de US$ 9,9 bilhões. Em paralelo, o PCC desembolsou US$ 4,5 bilhões de modo a comprar ações de companhias em dificuldade que operam em setores estratégicos da economia, como os de alimentos e de tecnologia. Os principais destinos foram Coreia do Sul, Alemanha, Austrália, EUA, Índia, Reino Unido, Hong Kong, Japão e França.

Ainda segundo o documento da Global Data, esses países demonstraram preocupação com a investida estrangeira. À época, deputados do Parlamento da União Europeia instituíram mecanismos legais para proteger de aquisições e investimentos as empresas do bloco.

Além de áreas importantes da economia, a China cobiça a educação. No Reino Unido, o PCC adquiriu 15 escolas particulares à beira da falência durante a pandemia, entre elas, centros de estudo do pensamento conservador. Do total, nove são de propriedade de empresas cujos fundadores ou chefes estão entre os membros mais importantes da ditadura asiática, garante reportagem do jornal Daily Mail. O Bright Scholar Group, que está comprando as unidades educacionais, pertence à filha de um dos conselheiros do PCC.

O Brasil não ficou de fora. Antes mesmo de o coronavírus desembarcar aqui, a China já vinha pondo dinheiro no Colégio São Bento, reduto tradicional da elite paulistana. A instituição viu-se preterida à medida que as famílias ricas se distanciavam do centro da cidade. Vivia uma crise financeira até 2007, com pouca quantidade de alunos e sob ameaça de encerrar as atividades. Isso mudou depois de um acordo firmado entre a Associação dos Chineses do Brasil e o governo estadual, além das adequações pedagógicas para receber os filhos dos migrantes chineses, que hoje são 30% dos matriculados na instituição. Atualmente, a escola oferece aulas de português voltadas a adultos no período noturno e de mandarim ao público. Alguns empresários chineses da região também fizeram doações financeiras, que permitiram amplas reformas na estrutura do colégio. Publicada no ano passado, reportagem do jornal O Globo informou que estatais do país asiático injetaram cerca de R$ 700 mil em projetos de educação no Estado.

A aproximação entre São Paulo e a China intensificou-se durante a gestão do governador João Doria (PSDB), não só pela parceria entre o Instituto Butantan e o laboratório Sinovac, mas também porque o advogado Marcelo Braga Nascimento comanda uma filial chinesa do Lide (empresa de Doria) “promovendo eventos pagos e reuniões entre empresários e agentes públicos na China e no Brasil, inclusive com o próprio governador e com seu vice, Rodrigo Garcia”, revelou reportagem da revista Crusoé. A relação entre Doria e Braga teria se estreitado depois de o tucano entrar na política. Em 2017, por exemplo, o advogado espalhou dezenas de bandeiras do Brasil pelas ruas de São Paulo para fazer propaganda de seu escritório — com aval da gestão Doria, então prefeito da capital. Braga assumiu a presidência do Lide China em julho daquele ano, no mesmo mês em que Doria realizou sua primeira viagem oficial ao país asiático como prefeito, com o objetivo de vender projetos de parcerias público-privadas e privatizações.

Na esfera nacional, além dos aportes corriqueiros, o governo chinês decidiu investir em sindicatos. Em 30 de março, o Fórum das Centrais Sindicais do Brasil recebeu US$ 300 mil (R$ 1,7 milhão, na cotação atual) da ditadura asiática. A entidade nacional reúne CSB, CUT, Força Sindical, UGT, CTB e NCST. Ainda em nosso país, o PCC já é dono da companhia de energia CPFL; do Terminal de Contêineres do Porto de Paranaguá, o segundo maior do Brasil; da Concremat, gigante do setor eólico; tem ações na Petrobras, dada a aquisição de parte do campo de Libra, do pré-sal; entre outros negócios vantajosos.

O interesse prioritário, entretanto, continua concentrado nas commodities — e até em razão disso circulam várias fake news segundo as quais a China estaria comprando largas extensões do nosso território. Soja, minério de ferro e petróleo representaram 74% das exportações brasileiras para o país no ano da pandemia. O PCC foi também o maior comprador de açúcar, carne bovina, celulose e carne de frango. A China é ainda o principal mercado de outros importantes segmentos da economia. Sete dos dez principais produtos de exportação em 2020 tiveram como destino o país asiático, o maior parceiro comercial do Brasil e responsável por US$ 33,6 bilhões do superávit de US$ 50,9 bilhões da balança comercial em 2020.

Na linha do pragmatismo com foco na manutenção de um bom ambiente para expansão de negócios, o embaixador chinês já elogiou o novo chanceler, Carlos França, e faz questão de afirmar que não há questões sensíveis a resolver com o governo Bolsonaro. Igualmente, teve consequência zero a recente fala de Paulo Guedes numa reunião privada — o ministro comentou que a China teria “inventado” o coronavírus e as vacinas produzidas no país são menos eficazes que os imunizastes ocidentais. Os chineses sabem que as democracias são barulhentas e poucas declarações resultam em algo concreto.

Já na vizinha Argentina, o regime mirou a artilharia de investimentos em outro setor. Em dezembro do ano passado, o presidente Alberto Fernández anunciou quatro acordos de investimento com o PCC. A China gastou US$ 4,69 bilhões para revitalizar ferrovias do interior do país sul-americano em troca de alta participação nas empresas nacionais do ramo.

Influência na mídia

Documentos do Departamento de Justiça dos Estados Unidos publicados em junho do ano passado revelaram que a imprensa estrangeira vinha sendo financiada com dinheiro da ditadura comunista antes mesmo da pandemia. Nos últimos cinco anos, o jornal China Daily, controlado pelo regime de Xi Jinping, pagou cerca de US$ 6 milhões ao The Wall Street Journal e US$ 4,6 milhões ao The Washington Post. Outras empresas da mídia norte-americana também foram beneficiadas com verbas para informes publicitários e matérias patrocinadas, tais como o jornal Los Angeles Times (US$ 753 mil) e a revista bimestral Foreign Policy (US$ 240 mil). Talvez em razão da linha editorial tão escancaradamente progressista, o maior jornal do mundo, The New York Times, não precisou de muito incentivo — ficou com apenas US$ 50 mil. A papelada do Departamento de Justiça garante que o PCC já distribuiu US$ 19 milhões a veículos de imprensa espalhados pelo mundo.

Os documentos mostram que o China Daily pagou a veículos de comunicação brasileiros de modo a promover conteúdo governamental. Na lista, a Empresa Folha da Manhã S.A., dona do título Folha de S.Paulo, arrecadou US$ 405 mil entre 2016 e 2020. Só em janeiro de 2019, a companhia jornalística recebeu US$ 41,4 mil para publicar material chapa-branca. Os recursos também se destinaram à Editora Globo, que faturou US$ 109 mil entre 2017 e 2018. Ao Correio Braziliense foram encaminhadas algumas migalhas, pouco mais de US$ 15 mil em novembro de 2019.

Diplomacia da vacina e o 5G

Jeffrey Wilson, diretor do think thank australiano Perth USAsia Centre, adverte que o PCC utilizará suas vacinas, a CoronaVac e a Sinopharm, de modo a viabilizar o 5G do gigante de tecnologia Huawei — a empresa é acusada de espionar usuários. Segundo o especialista, a China mira em países emergentes e faz com que fiquem dependentes dela. As negociações têm peculiaridades em cada país, mas geralmente envolvem chantagem com a finalidade de viabilizar a tecnologia de comunicação. “É um caminho comum do programa de ‘ajuda’ chinês”, declarou Wilson, em entrevista ao jornal The Australian, publicada em 25 de março deste ano, ao mencionar contratos de imunizantes do PCC com a Indonésia, os Emirados Árabes Unidos, o Brasil e as Filipinas, tendo em vista o 5G.

Por não ceder a pressões do PCC nesse ramo, Ernesto Araújo deixou o governo Bolsonaro, insinuou o agora ex-chanceler em publicações no Twitter. Segundo o diplomata, em um almoço, a senadora Kátia Abreu (PP-TO) pediu acenos ao lobby pró-5G chinês que há no Congresso Nacional. Ao se negar, acabou isolado. A briga, entretanto, não é de hoje. Em janeiro, o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, condicionou a liberação de insumos e doses da CoronaVac à queda de Araújo, informou reportagem do jornal Gazeta do Povo. O problema foi gerado por trocas de farpas com o então chanceler, que, à época, saiu em defesa do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), cujas declarações insinuaram que o PCC havia ocultado o patógeno do mundo. “Com o Ernesto, nós não conversamos mais”, disparou Wanming.

O cientista político Márcio Coimbra, coordenador de pós-graduação na Universidade Presbiteriana Mackenzie e diretor-executivo do Interlegis no Senado, afirma que falar em 5G é apenas a ponta do iceberg. “Trata-se de uma tecnologia estratégica, mas é só o que estamos conseguindo ver por enquanto. Há outros interesses por trás. A China já preparou seus próximos 70 anos”, declarou, ao mencionar que a influência do país no Brasil se intensificou durante o governo Lula. “Eles têm uma estratégia de longo prazo”, acrescenta Coimbra. “São interesses densos de cooptação.”

A maioria dos especialistas em China avalia que o sharp power não tem o propósito de criar um cenário em que sejam viabilizadas ações de interferência política direta — esse é o jogo da Rússia, que até financia grupos de mercenários na região do Báltico para influenciar eleições e ameaça militarmente a vizinha Ucrânia. A ditadura chinesa, que precisa tirar da extrema pobreza mais de 100 milhões de pessoas, estaria na verdade em busca de vantagens comerciais para a expansão de negócios e de segurança alimentar a longo prazo. O continente africano tem testemunhado a execução dessa estratégia. Quase todos os setores estratégicos na África são atualmente controlados pela China, de logística a telefonia, de energia a exploração mineral. Para contar com áreas cultiváveis no futuro, o PCC concede empréstimos a juros camaradas até a países inviáveis como Serra Leoa e República Democrática do Congo.

Nesse contexto, o Brasil aparece como alvo importante. Trata-se, afinal, do único país do mundo com potencial de dobrar rapidamente a produção do agronegócio sem causar danos ao meio ambiente. A China precisará consumir cada vez mais alimentos. E usará o sharp power para assegurar a elevação dos níveis de qualidade de vida de sua população. Cabe ao Ocidente jogar com inteligência para calibrar o poder dos chineses. E o Brasil terá de avaliar bem sua atuação e quanto estará disposto a ceder.

Revista Oeste