quinta-feira, 29 de abril de 2021

"Comunismo e nazismo: uma rinha totalitária sem vencedores", por Dionisius Amendola

 

Na Polônia, país assolado tanto pelo nazismo quanto pelo comunismo, manifestantes marcham contra as duas ideologias totalitárias.| Foto: Reprodução/ Twitter

Atravessar o emaranhado retórico que envolve a discussão sobre as relações entre o nazismo e o comunismo, suas semelhanças, desavenças, impacto histórico e, em especial, a contagem de seus cadáveres é destes esforços que poucos parecem dispostos a realizar. Mais fácil é sempre reduzir, simplificar e, assim, deixar de enxergar o que ambas ideologias carregam em seu centro: seu totalitarismo absoluto. Queremos dizer com isso que ambas ideologias buscam – cada uma com suas “sutilezas” – mudar radicalmente a sociedade, a cultura e, por fim, a própria natureza humana.

Um dos grandes autores a lidar com as etapas pelas quais passam os dois sistemas para a eliminação dos inimigos é Alain Besançon que, em seu livro A infelicidade do século, analisa cada uma das etapas ou ferramentas totalitárias, revelando aquilo que é singular em cada ideologia e o que é comum a ambas. É ele que será nosso guia nesta travessia.

Besançon mostrará como comunismo e nazismo buscam eliminar aqueles elementos negativos que impedem a ascensão de uma nova era comunal (comunismo) ou que corrompem a ordem hierárquica racial (nazismo). Em ambos os casos, há uma busca por um "bem" que se quer universal (comunismo) ou que se constrói nacionalista (nazismo). Contudo, seu principal ponto em comum é que, ao alavancarem uma nova moral, um novo direito e uma nova justiça, tanto comunismo quanto nazismo passam a ver a necessidade de se eliminar, expurgar, exterminar os elementos negativos da sociedade, sejam eles judeus (ou outras raças “inferiores”), ricos, burgueses, kulaks ou intelectuais.

Para atingir seus objetivos, comunismo e nazismo iniciam seu projeto com a seleção e destruição de seus inimigos – pois aqueles elementos negativos da sociedade são exatamente isso: inimigos de um projeto extraordinário, redentor e até mesmo místico. São, em último caso, hereges que merecem os piores castigos por impedir o nascer (ou renascer) de um novo tempo do mundo.

No nazismo temos cinco etapas: expropriação, concentração, operações de assassinatos, deportação e extermínio. No comunismo são seis etapas: expropriação, concentração, operações de assassinato, deportação, execução judiciária e fome. Notem que expropriação, concentração, operações de assassinato e deportação são comuns aos dois sistemas, mas o nazismo usa o extermínio, enquanto o comunismo usa a execução judiciária e a fome como ferramentas totalitárias.


As ferramentas totalitárias


1 Expropriação

Na Alemanha nazista, a expropriação afetou inicialmente os judeus. O direito à propriedade existia para os arianos, mas, segundo a lógica do sistema, isto também desapareceria, já que tudo pertenceria ao Estado e até os direitos políticos seriam reservados apenas aos membros do Partido Nazista, da mesma forma que a arte e as ideias só seriam aceitáveis se sustentassem o ideal nazista.

Já no comunismo, a expropriação era mais ampla porque era essencial ao projeto totalitário comunista, afinal a propriedade privada era considerada uma das fontes do “mal social”. Isto significava que, desde o início, os “meios de produção” deveriam ser expropriados em nome da revolução. Assim, casas, contas bancárias, terra, gado, fábricas, etc. não pertenciam mais a pessoas concretas, mas ao Estado.

2 Concentração

A ideologia nazista, desde o princípio, tachava os judeus de pestes, pragas que deviam ser colocadas à parte da sociedade alemã. Não apenas isso: eles eram vistos e considerados sub-humanos. Os guetos existiam para que se pudesse, assim, separar os judeus do resto da população. Eles eram uma infecção a ser contida e, posteriormente, exterminada. Para tanto era preciso encontrá-los e erradicá-los, como se faz em uma dedetização contra baratas ou num extermínio de ratos. As tropas que percorriam as ruas, os agentes da Gestapo, tinham como foco purificar a Alemanha (e os países conquistados) da presença dos judeus. Em determinados países essa purificação aconteceu de forma não apenas sistemática, mas com o apoio dos povos conquistados, pois os alemães alimentavam o sentimento antissemita das populações locais, que assim faziam vorazmente o trabalho sujo.

Nos regimes comunistas a tarefa era mais ampla e assustadoramente mais vaga: a destruição acontecia não contra um grupo específico, mas se buscava aqueles considerados, genericamente, “inimigos do povo”, “contrarrevolucionários” ou "inimigos da revolução". Eles podiam ser aristocratas, soldados do exército branco, ricos, banqueiros e grandes burgueses, mas também aqueles que traiam sua classe, camponeses que resmungavam contra as expropriações, trabalhadores das fábricas ou ainda aqueles pertencentes às classes letradas que ousassem expressar ideias ou palavras que afrontassem o regime. Em geral, não se buscavam pessoas com características físicas específicas ou pertencentes a comunidades bem definidas. Todos podiam ser o “inimigo”.

Aqui, deve-se ressaltar que, pela amplitude de seus inimigos, os regimes comunistas tinham os maiores aparatos repressores imagináveis até então. Para efeito de comparação, na Alemanha Oriental a Stasi (polícia secreta) empregava mais pessoas do que a Gestapo no tempo da Alemanha nazista.

3 Operações de assassinato

As “operações móveis de assassinato” eram o uso de tropas especiais para eliminar os inimigos – aqueles “empecilhos” sociais – ou até mesmo o fuzilamento de soldados capturados. Na Alemanha nazista, elas foram responsáveis pela morte de milhares de judeus.

Nos países comunistas, seja na União Soviética, na China, no Vietnã ou no Camboja, essas operações eram uma constante. O massacre de Katyn é um dos mais conhecidos e maior exemplos deste tipo de operação de extermínio.

4 Deportação

A deportação para campos de trabalho foi sistematizada pelo sistema comunista. Os primeiros campos de trabalho forçado soviéticos foram criados já em 1918, por Lênin, usando como base muitos dos campos existentes já na época dos czares. A partir destes modelos, os países que encampavam a revolução implementavam seus campos de “reeducação”. Na Alemanha nazista, os primeiros campos surgiram em 1933 (Dachau é o primeiro) e logo se espalham por toda a Europa conquistada.

Há diferenças importantes entre os campos comunistas e nazistas. Na Alemanha nazista havia dois tipos de campos: os de mortalidade baixa e os de mortalidade alta. O objetivo era o extermínio de uma parte da população e o trabalho exercido nestes campos só muito tarde foi visto como parte essencial do esforço de guerra nazista.

No sistema soviético – copiado por outros sistemas comunistas – havia ao menos três tipos de deportações para os campos: de povos ou categorias sociais (no qual a maior parte das mortes ocorriam já durante o transporte, que normalmente consistia em levar uma população de suas terras para o nada siberiano); deportações para gulags (as mais conhecidas), que eram campos de trabalhos forçados que geravam boa parte da força de produtiva do país; e, ao redor destes campos, estava o terceiro tipo, as zonas de trabalho forçado e residência vigiada. A mão de obra desses presos era usada na construção de grandes obras do projeto soviético. Só a construção do canal Danúbio-Mar Negro acarretou na morte de 200 mil prisioneiros. Aqui falamos claramente de um sistema escravocrata brutal que permaneceu ativo em pleno século XX.

5 Execução judiciária

A eliminação “justa” dos inimigos. Na Alemanha nazista, ela foi usada especialmente contra os não-judeus opositores ao regime – o caso mais conhecido é o assassinato dos membros de Rosa Branca Hans e Sophie Scholl.

No comunismo, esse procedimento era amplo e atingia tanto opositores reais quanto imaginários, isto é, mesmo membros notórios do partido comunista poderiam, em algum momento, cair em desgraça e ter que confessar seus pecados diante do tribunal do povo.

6 Fome

Um dos métodos exclusivos do sistema comunista, a fome foi utilizada na Ucrânia durante os anos de 1932 e 1933. O objetivo era eliminar não uma parcela da população (como camponeses), e sim o povo ucraniano. Aqui temos exemplo de um genocídio praticado pelos comunistas que só diverge em horror do praticado pelos nazistas por não ser tão “mecanicista”.

Totalitarismo

Essas práticas comuns aos regimes nazista e comunista revelam muito do método, mas não daquilo que os torna realmente totalitários. É a falsificação do bem aquilo que determina tal classificação.

Em ambos os regimes – no caso comunista, em todas as suas variações: stalinista, maoísta, castrista etc. –, os atos de terror foram realizados em nome de um bem, sob a cobertura de uma moral. Aqui, a destruição moral falsifica o bem para que o criminoso possa manter sua consciência “limpa” diante do mal que pratica.

No nazismo, o bem consiste em restaurar uma ordem natural corrompida pela história. Seu principal objetivo é corrigir a hierarquia das raças, deturpada e destruída pelo cristianismo, pela democracia, pelo bolchevismo e, em especial, pelos judeus.

A ordem correta do mundo, tendo no topo o Reich alemão, seria reconquistada com o esmagamento e submissão das outras raças, por meio de "atos de puro heroísmo, pela superação de si, ao cumprir o dever superior com o Reich, especialmente ao executar ordens dolorosas" (o assassinato, a desinfecção, o genocídio).

Há aqui uma visão esteticista da realidade, que enxerga uma ordem que deve ser imposta por meio do expurgo e da eliminação daqueles que perturbam a “beleza” da cultura e da raça ariana. O nazista se enxerga, antes de tudo, como um artista.

O comunismo falsifica o bem por meio de suas ideias morais. É o imperativo moral que está por trás de toda a pré-história do bolchevismo – sua vitória é a vitória do bem. Sai a estética (nazista) e entra a ética. Nas palavras certeiras de Alain Besançon: "O nazista se acha um artista; o comunista, um virtuoso".

Na visão comunista, a sociedade burguesa corrompeu o homem e seu objetivo é recuperar aquelas virtudes que existiam nas sociedades primitivas. É uma recuperação futura, que se dará após o fim do capitalismo e que revelará uma sociedade justa, igualitária, iluminista. E, já que este é o caminho natural da Humanidade, por que não acelerar o processo? Afinal, este renascimento depende apenas da vontade iluminada pela ideologia. No passado, havia a pura comuna; no futuro, o comunismo. No presente (eterno), a luta entre dois princípios. As forças que fazem avançar (progressistas) são boas, as que atrasam (reacionárias), por outro lado, ruins. Aqui, uma boa dose de gnosticismo está presente.

Segundo a lógica da ideologia comunista, pode-se determinar “cientificamente” o que é ruim, o que é atrasado, o que desvirtua a sociedade em seu avanço ao comunismo. Não é uma entidade biológica (como no nazismo), mas social, o que atrasa o progresso. São os burgueses, os kulaks, os bancários, a propriedade privada, os costumes, o direito, a cultura. E, para implementar sua nova moral, o comunismo fará o que for preciso para distorcer as velhas palavras: a justiça, a liberdade, a igualdade.

As duas ideologias buscam remodelar a sociedade partir de sua raiz. O nazismo já designa, de antemão, seus inimigos. De certa forma, ele é previsível e, por isso, fácil de identificar. O comunismo escolhe o inimigo de acordo com seu avanço. Há um componente perigoso de imprevisibilidade: não se sabe nunca quem será o inimigo (a vítima) de amanhã.

Para não cair em nenhum desses dois fossos ideológicos, é necessário prudência, perseverança e um olhar atento para os monstros – humanos, demasiado humanos – que carregamos dentro de nós.

Ao fim e ao cabo, essas duas experiências políticas resultaram em uma tragédia humana incomparável na nossa história. É preciso dissecar seus discursos e métodos, é preciso expor seus horrores. Mas, antes de tudo, temos que tomar as palavras de Alain Besançon como norte moral: “Quando estamos diante de um regime ideológico, a primeira coisa a fazer e a linha que se deve ter absolutamente até o fim é a de recusar, sem discussão, a descrição da realidade que ele propõe”.


Gazeta do Povo