sexta-feira, 30 de abril de 2021

"Muito mais que um filme muito chato", escreve Leonardo Coutinho

 

Frances McDormand em “Nomadland”, filme vencedor do Oscar - Foto: Divulgação


Nomadland, de Chloé Zhao, saiu da cerimônia do Oscar 2021 consagrado. Levou a estatueta de melhor filme; Chloé, com a de melhor diretora; e a protagonista Frances McDormand, com o prêmio de melhor atriz. Vi o filme nesta semana. Precisei cortar no meio, pois a modorra era de matar. Para mim, o grande ganhador do Oscar deste ano é um filme absolutamente chato. Não me atreverei a fazer crítica de cinema. Não sou a melhor pessoa para este tipo de atividade.

Trata-se de uma adaptação cinematográfica de um livro que eu não conhecia até saber do filme. A estrela McDormand encarna uma personagem fictícia que contracena com pessoas que representam suas histórias reais em um híbrido de documentário e ficção sobre pessoas que vivem em vans ou trailers perambulando onde há trabalho temporário disponível. Muitas delas entraram nessa vida depois que perderam o emprego e suas casas na crise imobiliária de 2008.

Deveria ser triste ver um monte de velhinhos vivendo precariamente como nômades e pegando no pesado para sobreviver depois de uma vida de trabalho sem pensões e a estabilidade merecida. Mas há algumas coisas que atrapalham. 1) A overdose de McDormand é tamanha que tudo fica em segundo plano. É tudo tão exageradamente focado em seu universo que os elementos do drama social são diluídos na singularidade 2) O filme vende a ideia de que, apesar de tudo, muitos preferem a ter que se adequar às regras de uma vida convencional. A personagem central, por exemplo, abre mão repetidas vezes de uma vida estável para passar frio em estacionamentos no inverno ou ter que lidar com uma diarreia avassaladora apenas com um balde plástico. Nomadland quase faz desaparecer o problema que dá origem ao drama retratado: a já citada quebradeira decorrente do estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos.

Chloé Zhao e Frances McDormand vão ao coração da América branca – o Meio Oeste – para mostrar o fracasso de um país injusto. O filme tem direito até a uma pregação político-sindical sobre as injustiças sociais. Um prisma progressista muito utilizado para mostrar as imperfeições da sociedade americana. E sempre funciona. Muita gente fica avexada. É o tal tapa na cara que muita gente acha que a classe média e suburbana dos Estados Unidos precisa tomar, para acordar do “sonho” que seria o seu próprio país.

Nomadland fala de uma crise passada. Mas, para mim, acendeu um alerta para a possibilidade de uma vindoura. Minhas previsões são absolutamente furadas. Mas não resisto em chamar atenção para algo cada vez mais evidente ao meu redor.

Algumas regiões dos Estados Unidos estão evidentemente em um novo processo de bolha imobiliária. Em Washington, D.C., por exemplo, vender um imóvel virou sinônimo de leilão. Sempre tem alguém disposto a dar mais. Corretores estimam que em média os negócios estão sendo fechados com até 30% de sobrepreço. Chama a atenção que muitas operações são em dinheiro vivo – o que difere sobremaneira da bomba que foi detonada em 2008 devido aos créditos sem lastro.

Este fenômeno se repete massivamente nos subúrbios da capital americana, na Flórida, Nova York e Califórnia. E tende a se alastrar. As principais engrenagens deste fenômeno são os traficantes de drogas e os chineses. Os traficantes têm dinheiro em cash demais, precisando ser lavado e inserido no sistema. E os chineses têm dinheiro demais que eles querem a todo custo tirar do sistema. A tempestade perfeita.

Para conter a fuga de capitais que vinha ameaçando a estabilidade de sua moeda, Xi Jinping baixou normas com uma série de restrições à saída de recursos de seu país. A classe média e os ricos do país – grupo do qual vem a diretora Chloé Zhao, que filha de um abastado ex-presidente uma estatal de mineração, que depois de se separar da mãe dela se casou com uma humorista com permissão do Partido Comunista Chinês para fazer piadas – faz mil e um truques para tirar suas economias no país, já que por lei estão impedidos de tirar do país mais de 50.000 dólares por ano.

O caminho mais comum é o seguinte. Cambistas chineses residentes nos Estados Unidos são fiéis depositários de pilhas de dólares que lhe são entregues a gente que precisa lavar dinheiro, sobretudo os traficantes de drogas. Seus contatos na China oferecem para os ricaços locais serviços de câmbio barato, discreto e seguro.

Geralmente, os valores correspondentes à operação de câmbio são pagos na China em faturas de produtos que são exportados legalmente para o Ocidente, alimentando o comércio formal por meio das importadoras dominadas por traficantes. Depois de descontadas as comissões, os cambistas nos Estados Unidos usam os valores para comprar casas que são alugadas ou, em muitos casos, ficam fechadas para não chamar a atenção do fisco.

Nada disso tem a escala de 2008, mas também não sei quão profundo e daninho por ser. Nomadland mostra a face de uma América feia e fracassada. Mas, eu saí do filme com a impressão de que algo mais feio está por vir.


Gazeta do Povo